Grupo de Cultura, Ensino, Extensão e Pesquisa visa oferecer valor a sociedade mediante a produção de conhecimentos úteis ao campo da cultura e da fotografia.
A sensação de aperto proporcionada por Berenice Abbott
A sensação de aperto proporcionada por Berenice Abbott
A fotografia de Berenice Abbott, tirada em 1933, mostra uma rua nova iorquina pela qual diversas pessoas caminham. Tirada de um ângulo superior, a foto dá ênfase aos altos prédios presentes dos dois lados da rua. A autora ainda cortou as laterais da imagem, ampliando o sentimento de aperto proporcionado por ela.
A foto, possivelmente tirada de uma janela devido à altura, me fez refletir sobre a crescente e compulsória construção de prédios cada vez mais altos nos centros urbanos. Essa verticalização das cidades expressada na foto me remete à sensação de pressão, aperto, falta de ar.
Na fotografia, as pessoas são apenas pequenos pontos quando comparados à grandiosidade e altura dos edifícios. Tento me imaginar nessa rua, olhando para o céu e enxergando apenas um pequeno pedaço dele. A imagem dos prédios se agigantando sobre mim parece, ao mesmo tempo, incrível e assustadora. É daí que surge o sentimento incômodo de aperto, de se perceber minúsculo entre as grandes construções.
Além disso, a falta de coloração na imagem realça o contraste formado pela luz do sol que perpassa os vãos dos prédios, formando largas faixas de luz na rua coberta de sombras. Ao caminhar por esta rua haveriam momentos de sombra e momentos de luz intercalando-se.
Ao meu ver, esta é a atual cultura dos espaços urbanos: se sentir pequeno, às vezes impotente, apenas mais um em meio a um grande grupo de pessoas, prédios e informações; apenas mais um indistinto indivíduo, contrastando com os altos prédios das cidades e alternando entre a luz e a sombra.
#leitura é uma coluna de caráter crítico. Trata-se de uma série de análises de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.
COUTO, Sarah. Verticalização da cidade. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em:<https://culturafotograficaufop.blogspot.com/2022/10/verticalizacao-da-cidade.html>. Publicado em: 16 de mar. de 2023. Acessado em: [informar data].
De todos os olhares complexos, o de James Dean é um modelo exemplar.
De todos os olhares complexos, o de James Dean é um modelo exemplar.
James Dean foi um astro dos anos 50 e um ícone da cultura pop para qualquer tempo posterior. Famoso pela atuação, beleza e comportamento, o falecido ator, morto num acidente de carro no ano de 1955, aos 24 anos de idade, se tornou postumamente o eterno padroeiro da rebeldia e referência quando se trata de juventude. Características essas que foram muito bem captadas pela fotografia de Dennis Stock.
O ator era conhecido pela irreverência, detalhe de sua personalidade que utilizava na atuação metódica de seus personagens, também muito semelhantes ao próprio ator, como o personagem Jim Stark de Juventude Transviada, o filme mais famoso em que atuou.
Apesar da fama ascendente, na época, James Dean levantou algumas questões polêmicas. Uma delas, referia-se a vida amorosa e sexual do ator. E anos após a sua morte, muitas especulações e boatos foram levantados, em especial sobre a sua relação com Marlon Brando, outro ator consagrado e famoso pelo papel de Don Vito Corleone em O Poderoso Chefão.
Em sua biografia não autorizada, intitulada James Dean: Tomorrow Never Come (O amanhã nunca chega), escrito pelos escritores Darwin Porter e Danforth Prince, foi afirmado que Marlon Brando se apaixonou pelo olhar de James Dean, que o fizera “arder”. É afirmado também que os dois foram um casal.
Independente da veracidade dessas afirmações, a vida pública de astros do cinema, assim como a de artistas no geral, sempre estimularam o imaginário do público e sempre serviram como exemplos de vidas anônimas e privadas, mundo afora. Ao olhar para James Dean, ciente da sua suposta homossexualidade, noto que algo sempre escapa em sua discrição gritante e silêncio embriagado.
Seus olhos são sensíveis, e, não de forma rasa; seus olhos são profundamente sensibilizados. São dotados de uma sedução que quase sempre seduzem sem querer. Entretanto, seu olhar não é frágil e nem delicado. Pelo contrário, são olhos afrontosos, rebeldes, como o próprio ator fora em vida.
Para mim, James Dean é o melhor exemplo de como homens gays não são, em vias de fato, sinônimos do que é feminino ou da ausência de uma masculinidade; ainda que a escolha e a natureza de cada um não seja limitada a não ser ou ser como tal – afinal cada um possui a liberdade de se identificar como bem entende e como se reconhece intimamente.
A liberdade de escolha, expressão e identificação é justamente o cerne desta questão, pois, socialmente, existe uma pressão silenciosa de rotular determinados grupos de pessoas de forma inflexível e totalitária, que nunca condiz com a realidade individual.
James Dean é um brasão para os seus semelhantes; que é – e deveria ser visto socialmente como – a naturalidade do desejo de um homem para com outros homens. E seu olhar sedutor e penetrante – ainda que quase ingênuo – não o torna desprovido de qualidades tipicamente masculinas, como: a postura, a voz, o comportamento, a mentalidade, as roupas que veste, seus gostos pessoais e trejeitos.
Hoje a liberdade, a orientação sexual e a identidade de gênero são questões defendidas por lei. Entretanto, olhando para a época em que essa foto foi fotografada, acaba sendo muito contraditório como a virilidade de homossexuais atualmente parece ser um tabu e um incômodo a nível social.
Um exemplo muito claro disso é como, majoritariamente, o conteúdo cultural voltado para homossexuais é sempre tão feminino, tão delicado e tão limitado a estereótipos e raramente deixam de ser falocêntricos. O que faz parecer com que a orientação sexual de um indivíduo o torne incapaz de ter individualidade de escolhas, pensamentos, gostos e preferências que perpassam suas preferências sexuais.
Em outras palavras, James Dean é um totem para todos os homens gays que não se identificam com voguing, roupas femininas, saltos altos, divas pop e todas as associações culturais que lhes são atreladas. São tão pejorativas como afirmar que todo homem heterossexual gosta de futebol, por exemplo.
Sim, há muita sensibilidade em olhos como os de James Dean, mas nem sempre há delicadeza por trás desses olhares. Alguns desses olhares miram em corridas de carros, esportes, literatura, no mercado de Wall Street, em gravatas-borboleta, ou nos corpos musculosos que as vestem, com alguma malícia, com muito desejo ou com nenhuma intenção.
#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.
A capa da Veja que “matou” Cazuza antes da hora é, hoje, um exemplo sobre os limites necessários na cobertura jornalística
A capa da Veja que “matou” Cazuza antes da hora é, hoje, um exemplo sobre os limites necessários na cobertura jornalística
“Uma vítima da Aids agoniza em praça pública” era a manchete que estampava a capa da revista Veja em Abril de 1989. A edição leva o rosto de um dos maiores ídolos do rock nacional, o cantor Cazuza, ex-integrante do Barão Vermelho e autor de clássicos como Ideologia (1988), O Nosso Amor A Gente Inventa (1987) e Exagerado (1985). A capa assustou muita gente por passar a imagem de que o artista, que havia se declarado soropositivo naquele mesmo ano, havia falecido em decorrência da Aids.
A edição, na época, causou enorme polêmica quanto ao conteúdo da matéria sobre o cantor. O texto trouxe uma forma sensacionalista de abordar a luta de Cazuza contra a doença e é objeto de críticas, até hoje, sobre os limites necessários para se manter a ética no jornalismo.
Analisando a capa sob a ótica da atualidade, isoladamente do texto, notamos o cantor magro, pesando cerca de 40 quilos, em decorrência da AIDS e a forma exagerada como a Veja notícia a sua enfermidade já é suficiente para chocar qualquer um que passasse em frente às bancas de revista na época.
Mas o que vejo é uma postura serena de uma pessoa que não se deixou abater mesmo passando pela fase mais amarga de sua vida. O olhar de Cazuza é fixo, imponente e corajoso. Ele me olha nos olhos e me passa a sensação de resistência e de que não se entregaria às delimitações e ao terror que a AIDS, ainda sem um tratamento adequado, passava naqueles tempos.
Com a afirmação da revista, que de forma infeliz abordou esse assunto, penso que se o propósito era falar, de forma a esclarecer, ajudar, informar, sobre a doença que acometeu o músico e que, na época, carregava diversos mitos, inverdades e preconceitos em relação às suas vítimas. Poderia não ter se rendido ao apelativo e ao sensacionalismo. Numa tentativa absurda de chamar atenção do público e vender mais às custas de uma pessoa em grande vulnerabilidade.
Cazuza morreu um ano depois do ocorrido. E ainda vemos muitos exemplos jornalísticos tão apelativos quanto este. Basta ligar a televisão para nos depararmos com programas que exploram diversos assuntos sérios da mesma forma que a Veja fez em 1989. Portanto, que essa capa seja lembrada e debatida na sociedade brasileira até os dias de hoje para que possamos avançar na reflexão dos limites entre a informação e o sensacionalismo para que não façamos mais vítimas dessa irresponsabilidade.
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Num mundo onde muitos valores estão sendo perdidos, a lealdade paterna é uma dádiva
Num mundo onde muitos valores estão sendo perdidos, a lealdade paterna é uma dádiva
De uma forma geral, acabamos passando a maior parcela de nossas horas almejando usufruir da companhia de quem nos é caro, mas executando as ações que podem fortalecer nosso poder de compra, nossa segurança, nossa saúde e afins, mas não passamos, de fato, acompanhados dessas pessoas nem lhes deitamos um olhar por tanto tempo quanto deveríamos.
Me recordo da minha infância; como era boa a sensação de ir até a praia com os meus pais. Me lembro de pensar, ainda menino, em como queria que aqueles dias nunca chegassem ao fim. Sorrio ao recordar das ilhotas próximas da costa, de como as enxergava com olhos de criança: continentes repletos de aventura. Os peixes eram criaturas fantásticas, tão interessantes quanto aquelas criaturas que nos dias de hoje são tão mais aparentemente interessantes na televisão.
De todas as coisas que me lembro, a presença do meu pai é a que mais me traz alegria. Aqueles momentos que hoje tento encaixar na memória, como peças de um quebra cabeças, como quando surfei nos ombros do meu velho nadador, a conquistar um daqueles continentes. Consigo sentir a mesma sensação nesta fotografia de Danny Van Vuuren. Para essas crianças, a menor das ondulações da água é algo novo, ainda que não seja inédito.
Porém, conforme a vida avança, o tempo se torna um inimigo. Precisamos nos estabelecer no mundo, profissionalmente, academicamente, socialmente, e temos que dividir nossa atenção com outras pessoas, outras causas, outras coisas. Até que, quando nos damos conta, já não temos um pai ou uma mãe, e tudo o que nos resta são as lembranças de quando estávamos protegidos pela lealdade dos laços familiares e pelo amor mais honesto que se possa existir.
Penso que, como num ciclo – para aqueles que possuem essas memórias intactas, resguardadas e vistas com bons olhos -, desejamos tanto retornar para aquele cenário de proteção familiar, que queremos assumir os papéis de nossos progenitores ou criadores. E é isso o que sinto olhando esta foto. Uma mistura de saudade da proteção do meu pai e um desejo de ser eu mesmo um pai.
A lealdade desses laços não se enfraquece seja qual for a situação. O amor existe, basta olhar para a fotografia; o cuidado singelo, o medo protetivo, a união. E lealdade seria o quê se não fosse o amor? Afinal, lealdade é a fidelidade e a responsabilidade que se tem mesmo na ausência, mesmo na morte. E a figura paterna será sempre a associação-mór disto.
São como os escudeiros da idade média, sempre prontos para cumprir seus votos e agir como os homens juramentados que são. Pais são isto: leais. E para todo filho que teve a sorte de ter um pai juramentado em seu desenvolvimento e felicidade, existe também o voto de lealdade de poder refletir seus valores, honrar os ensinamentos e seguir as pegadas na beira da praia que um dia foram daquele que nos antecedeu.
Afinal, neste mundo não estamos tão sozinhos quanto nos fazem crer. Se existem aqueles que nos ajudam tanto, mesmo quando não podem, nos doam a sua própria vida, de bom grado, para nos deixar viver melhor e com mais do que eles mesmos tiveram. A abnegação de um pai, a lealdade, é um dos valores que sei que jamais se perderão, quando tantos outros se perderam, como tantas pegadas engolidas pelas ondas do mar.
#leitura é uma coluna de caráter crítico. Trata-se de uma série de análises de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.
BRITO, C. S. Escudeiros de sempre e a lealdade de nunca. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: https://tinyurl.com/bdzzbyra. Publicado em: 23 fev. 2023. Acessado em: [informar data].
Shirley Stolze denuncia em sua fotografia mais um caso de racismo religioso no Brasil.
Shirley Stolze denuncia em sua fotografia mais um caso de racismo religioso no Brasil.
A fotografia abaixo é da fotojornalista Shirley Stolze, do jornal baiano A Tarde. Publicada em novembro de 2018, a foto é vinculada a uma matéria sobre um acontecimento de intolerância religiosa e mostra uma parte da área externa da Casa de Oxumarê: um dos mais importantes terreiros de Candomblé do Brasil, em Salvador (BA).
Shirley Stolze
No muro branco do local há a seguinte frase pichada com tinta preta: “Jesus é o caminho”. A frase é uma afronta aos que frequentam a casa e cultuam religiões afro-brasileiras. A pichação invalida outras crenças, impondo um ponto de vista como sendo o único a seguir.
É importante ressaltar o racismo religioso como um elemento presente estruturalmente desde a construção do que hoje conhecemos como Brasil. Nesse sentido, não há como negar que o racismo é uma componente presente, desde o período colonial, nos discursos e nas práticas de intolerância contra religiões de matrizes não europeias. Sendo a invalidação religiosa, que era praticada pelos Jesuítas com indígenas e negros, unida à violência contra o que era considerado “diferente”, ainda permanente.
De acordo com dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em 2021 foram recebidas 586 denúncias por intolerância religiosa. O estado que mais registrou ocorrências foi o Rio de Janeiro. Segundo o relatório da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, 91% dos ataques foram destinados à religiões de matriz africana. Sendo essa vertente a mais atacada em todo o país. Assim, faz-se necessário ampliar o debate da Intolerância religiosa para o Racismo religioso.
Em 2022, ano de eleições, Michelle Bolsonaro, a primeira dama do Brasil, vem sendo uma personagem ativa na campanha para a reeleição do atual presidente da república, Jair Bolsonaro, filiado ao Partido Liberal. Com um discurso emotivo, que ressalta valores apoiados pela população mais conservadora do país, Michelle vem servindo de mediadora para atrair o eleitorado feminino e despertar a admiração e a atenção de grupos evangélicos no Brasil.
Em agosto de 2022, Michelle compartilhou em suas redes sociais um vídeo da vereadora paulista Sonaira Fernandes, do partido Republicanos, que dissemina discurso de ódio contra religiões de matriz africana e acusa o ex-presidente Lula de ter entregado a alma para vencer as eleições. No vídeo, aparece o ex-presidente e atual candidato à presidência do país Lula recebendo de uma mãe de santo um banho de pipocas, ritual feito para saudar Omulu, orixá cultuado por religiões afro-brasileiras. Na legenda do vídeo, Michelle escreve: “Isso pode né! Eu falar de Deus, não”.
A frase registrada por Shirley Stolze apresenta sintomas de uma sociedade adoecida por fanatismo e agravada por discursos que rejeitam a pluralidade. Além disso, o uso da fé para a exploração política tira de campo os debates necessários para o pleno funcionamento do Estado Democrático de Direito. O discurso presente na fala da primeira dama e na foto analisada afrontam a Constituição Federal que determina a liberdade religiosa para todos os cidadãos. E, o Brasil, construído em cima de sangue e suor negro, persiste em negar para essa população dignidade e respeito.
#leitura é uma coluna de caráter crítico. Trata-se de uma série de análises de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.
Silva, Vinícius Augusto. Racismo Religioso e a guerra política do bem contra o mal. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em:<https://culturafotograficaufop.blogspot.com/2023/02/blog-post.html>. Publicado em: 16 de fev. de 2023. Acessado em: [informar data].
A fotografia abaixo, ainda que em preto e branco, demonstra o quanto a vida pode ser colorida. Em uma rua de pedras, dois meninos pequenos correm atrás de uma vaca e um bezerro, praticamente do tamanho deles.
Ane Souz
Se não fosse pelas vestimentas dos meninos, a foto poderia ser facilmente localizada no passado, tanto pelo registro em preto e branco, quanto pelo cenário, e também pela raridade da atitude em tempos atuais. As crianças de hoje, principalmente nas grandes cidades, estão inseridas em um mundo cada vez mais virtual, em que as experiências no real ficam cada vez mais limitadas. Portanto, em pleno século XXI é incomum haver crianças correndo atrás – ou junto – de animais da fazenda em espaços urbanos.
Nas sociedades capitalistas tudo pode ser transformado em mercadoria, logo, o valor das coisas está em seu potencial de troca. Uma vaca, para um adulto criado nesse contexto, é sinônimo de dinheiro. Com certeza este não é o caso das crianças, que se divertem com os animais sem lhes colocar um peso monetário.
Imagino que os meninos tenham gostado do fato de que, como eles, os bovinos sejam pequeninos. Foi uma peraltagem compartilhada, entre crianças que subvertem os costumes de seu tempo e animais que seguem seus instintos, correndo pelas ruas. Logo, uma experiência legítima de liberdade.
A infância é, sem ressalvas, a fase mais potencializadora do nosso desenvolvimento. Quando convenções sociais, preconceitos e paradigmas ainda não cercearam completamente nossa liberdade, a vida é um arco-íris que possui infinitas cores. À medida que envelhecemos, essas cores se desbotam, mas ficam eternizadas nas lembranças e nos registros que deixamos, e ressurgem quando os visitamos.
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Foto que representa o amor entre irmãos desde a primeira interação.
A foto, tirada pela brasileira Daniela Justus – internacionalmente conhecida por suas fotografias de partos e gestantes – retrata a felicidade do momento em que a bebê, ainda no hospital, é mostrada à família.
Daniela Justus
Embora a imagem contemple a reação de várias pessoas ao ver a criança, o enquadramento principal é no irmão da bebê. Ele, em um ato de amor incondicional, beija o vidro que os separa, na intenção de que sua irmãzinha possa sentir seu carinho, mesmo sem contato físico direto.
Com a mão no vidro e os olhinhos marejados, a expressão corporal do menino me faz sentir uma imensa compaixão ao ver essa foto. Como se meu coração se aquecesse só de ver essa cena. Me pego refletindo sobre como o nosso corpo é capaz de realizar tarefas que, racionalmente, não tem explicação.
Na foto, por exemplo, é nítido o amor já existente entre os irmãos, que nem sequer se conhecem ainda. Inconscientemente, imagino como será a relação deles. Será que vão brincar no quintal? Será que o menino defenderá sua irmãzinha quando ela chorar por alguém que a fez sofrer? Será que ele dará a ela bons conselhos?
Questionamentos esses que, infelizmente, não terei respostas. Mas, prefiro acreditar que, sim, eles terão uma relação linda. Sim, ele cuidará dela, e serão melhores amigos. Ao fazer a análise de uma foto, é interessante ver como é possível acessar uma memória que, muitas vezes, nem lembramos que ainda está ali.
Considero também uma forma de autoconhecimento. Uma forma de explorar as lembranças, que mesmo quando é de interesse esquecê-las, querendo ou não, estarão ali, guardadas em algum lugar do subconsciente. Não diferentemente, ocorreu comigo quando visualizava essa imagem. Imagino se me fiz todas essas perguntas em relação ao futuro dos irmãos porque não tenho contato direto com o meu.
Assim como no retrato, sou a irmã caçula e, de algum modo, desejava esse carinho fraterno. Por outro lado, reflito sobre esse momento de “apresentação” à família. Um momento em que, sem sequer entender, a bebê já tem inúmeras expectativas materializadas em seu ser. Provavelmente, há um quarto rosa e repleto de bonecas à sua espera em casa.
E, antes mesmo de nascer, possivelmente seus pais já idealizaram seu casamento, sua profissão e até como será sua personalidade. Isso me faz pensar no quanto nosso comportamento pode ser condicionado a expectativas alheias. Quantas de nossas ações são realizadas só porque queremos, sem interferências do mundo externo?
Perguntas essas que surgiram a partir da análise de uma única foto. Impressionante como é possível tirar várias interpretações e reflexões de uma fotografia. É realmente um processo de autoconhecimento. Obrigada, Cultura Fotográfica, por me permitir esses momentos de inserção no meu próprio eu.
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Na fotografia abaixo, Paulo Vainer utiliza a técnica de motion blur em conjunto com o alto contraste, para passar a sensação de que a imagem está em movimento. Este trabalho faz parte do ensaio fotográfico chamado “movimento”.
Paula Vainer
Apesar de todo o movimento aparente na fotografia, ao observá-la só me vem à mente a imprecisão da imagem. A forma que a luz toma, toda estourada, é o que mais se sobrepõe. Essa é uma imagem recorrente para mim. É assim que eu enxergo o mundo, como uma imagem desfocada.
Me lembro de ter como passatempo, quando criança, ficar deitada olhando para a luz fixamente, vendo seus raios se dissolverem formando caminhos. Aquilo, para mim, sempre foi o normal, enxergar a luz daquela forma. Até que um dia descobri que nem todos viam daquela maneira. Eu só enxergava assim por um problema em meus olhos, e isso não era o normal para os outros. Seria preciso corrigir aquilo.
Com o passar do tempo a minha visão ficou mais prejudicada. Sem os óculos para corrigi-la, eu sou praticamente cega. Ainda mais quando a luz atinge diretamente meus olhos. Andar na rua à noite, é quase impossível. Toda vez que um carro vem em minha direção com seus faróis acesos, sou tomada pela cegueira. A luz domina tudo, me deixando sem ver absolutamente nada.
A luz que antes era divertida, agora só me causa dores de cabeça. Quanto mais luz, mais meus olhos doem. O escuro, que causava medo, agora é reconfortante e querido. Mas, apesar de tudo, ainda gosto de me lembrar de como a luz sempre foi um abrigo para mim, de como ela era minha diversão e me protegia dos monstros à noite.
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A fotografia do autor Marc Riboud foi produzida em Liu Li Chang, uma rua de antiquários em Pequim. Essas lojas eram muito procuradas durante a Revolução Cultural, – movimento social com intuito de eliminar as influências capitalistas da China – onde a população chinesa entregava suas jóias para o Estado.
Mark Riboud
A cena retratada poderia ser facilmente confundida, caso não houvesse uma contextualização, com um momento cotidiano encontrado em qualquer lugar do mundo. Apesar de todo seu significado histórico, num primeiro momento, o que vemos são pessoas vivendo suas vidas rotineiramente.
O que salta aos olhos é o humano, que torna aquela rua habitada e cheia de vida, independente do motivo de estarem naquele lugar, naquele momento em questão. Os adultos conversam sentados na calçada e observam o que acontece ao redor, enquanto várias crianças se espalham pelo ambiente prontas para iniciar uma brincadeira.
Consigo imaginar essa imagem na rua da cidade onde nasci, durante as pacíficas tardes de domingo quando nenhum carro transita mais. Os adultos se reúnem para conversar na calçada e vigiar as crianças que aproveitam para brincar de jogar bola ou de pega-pega. Por mais monótono que possa parecer ter uma vida rotineira, sem muitas aventuras, é nessas pequenas situações do dia que se encontram a calmaria e o conforto dos problemas. São pequenas coisas acalentadoras que tornam esses momentos mais suportáveis fazendo com que a vida valha a pena, como por exemplo, ir ao bar com os amigos, assistir a novelas sempre nos mesmos horários ou comer macarronada nas datas comemorativas em família.
A beleza do cotidiano está em passar pelos mesmos cenários e provações, e só perceber quando um belo dia você para e olha para tudo aquilo com outra percepção, vendo como esses momentos fazem falta. Nenhuma aventura consegue ser melhor do que ter uma conversa sincera com alguém querido, por mais corriqueiro que possa ser, a vida é feita em sua maioria dessas situações.
Talvez a vida nunca proporcione grandes conquistas dignas de um livro, e isso não é algo para se sentir mal, isso não a torna menos interessante, a beleza está escondida nas entrelinhas de cada momento, tudo começa a fazer mais sentido quando se para de procurar por histórias épicas e se passa a aproveitar cada instante.
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PAES, Nathália. Nada mais que o cotidiano. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em:<https://culturafotograficaufop.blogspot.com/2023/01/nada-mais-que-o-cotidiano.html>. Publicado em: 19 de jan. de 2023. Acessado em: [informar data].