A Terceira Classe

A desigualdade econômica num dos mais luxuosos navios do início do século xx.

A desigualdade econômica num dos mais luxuosos navios do início do século xx.

Feita em 1907 pelo fotógrafo Alfred Stieglitz, a fotografia retrata o convés do Kaiser Wilhelm II, um navio de cruzeiro, feito para ser o mais luxuoso de sua época, que, no momento retratado, zarpava dos Estado Unidos rumo à Europa.  Na foto, podemos ver o deck superior, destinado aos passageiros de primeira classe, pessoas mais abastadas, e o deck inferior, destinado aos passageiros da terceira classe.

Na foto, podemos ver o deck de um navio. Ele é dividido em dois andares diferentes os quais estão abarrotados de pessoas. Uma escada forma uma linha horizontal no meio da fotografia dividindo os dois andares do navio
Alfred Stieglitz

É difícil olhar para a fotografia e não lembrar do filme Titanic, um clássico do cinema, dirigido por James Cameron, que conta a história do amor de um casal que embarca no navio e é separado pela divisão das classes que lá ocorre. Coincidentemente, o Titanic, foi construído alguns anos depois desta foto, justamente para superar o Kaiser Wilhelm II nas questões de velocidade e luxo. 

Assim como o longa, a foto escancara a desigualdade social da época de uma maneira bem clara. No centro da imagem, a ponte traça  uma linha imaginária entre os dois grupos de pessoas. Na parte superior, percebe-se que os indivíduos ali presentes são da classe mais abastada, tanto pelo fato de estarem em um patamar superior aos de baixo, como pelo fato de um dos homens estar usando um chapéu Paris de palha, símbolo da elite francesa do final do século XIX e início do século XX.  Abaixo deles, e do outro lado da linha imaginária, podemos ver a terceira classe sendo representada por mulheres e crianças.   

É interessante pensar como a fotografia mostra não somente como as pessoas eram segregadas  baseadas em suas situações econômicas, mas também sobre como os equipamentos fotográficos estavam longe de ser acessíveis. O ângulo a partir do qual a foto foi feita coloca o fotógrafo no mesmo patamar que a alta classe, a câmera olha para os mais pobres assim como os ricos: de cima para baixo. 

Isso me faz  questionar as afirmações sobre as fotografias terem  democratizado as imagens. Com o advento da reprodução técnica, muitos  passaram a  ter acesso a imagens que retratavam lugares, pessoas e obras de arte que eles nunca veriam sem a fotografia. Entretanto, a democracia é uma via de mão dupla, já que todos devem ouvir e serem ouvidos em um regime democrático. Na fotografia, devido aos equipamentos caros e de difícil acesso, era raro que pessoas das classes mais baixas pudessem fotografar. Sendo assim, milhares de pessoas de classes, etnias, religiões e nacionalidades foram retratadas apenas por um olhar eurocêntrico, vindo de homens brancos e ricos.

É inegável que Stieglitz foi bem intencionado ao produzir essa fotografia, mas também é perceptível que o fotógrafo, talvez devido às amarras sociais, não optou por fotografar as pessoas da baixa classe de um ângulo normal. Mesmo que essa foto tenha sido feita a mais de 100 anos atrás, essa atitude de muitos fotógrafos de não  retratar minorias e pessoas pobres de um ângulo que não o da miséria e sofrimento, não exaltando essas pessoas, persiste até hoje.

O problema atual não é necessariamente a falta de acesso aos equipamentos fotográficos, já que hoje contamos com  smartphones munidos de câmeras com preços relativamente acessíveis. Contudo, mais uma vez, a  visão produzida por pessoas que não pertencem às elites econômicas se encontra ofuscada, desta vez, por padrões técnicos e estéticos. Esses são os principais norteadores dos algoritmos das redes sociais, que têm a capacidade de identificar várias características de fotografias indo desde o equipamento usado até a cor da pele das pessoas da foto. Com isso, eles priorizam imagens feitas com smartphones mais caros e que retratam pessoas brancas.

Esta fotografia me entristece, não só pelas condições precárias em que alguns se encontram enquanto outros desfrutam do luxo , mas pela terrível continuidade dos fatores presentes nela. Um século depois e a sociedade continua ridiculamente desigual, um século depois e as pessoas que controlam os meios midiáticos continuam o projeto de abafar a voz dos oprimidos.

#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.

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  • ANG, Tom; Fotografia: O Guia Visual Definitivo do Século XIX à Era Digital; São Paulo; PubliFolha; 2015.

O formigueiro humano em Serra Pelada

Fotografia que mostrou para todos o maior garimpo a céu aberto do mundo.

Fotografia que mostrou para todos o maior garimpo a céu aberto do mundo.

Essa foto, realizada pelo fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado em 1986, revela a grande corrida do ouro que levou milhares de pessoas à Serra Pelada, no Pará, em busca de enriquecer. A imagem mostra uma cratera de 24 mil m2, de onde esses homens extraíram toneladas de ouro. 

descrição: a imagem mostra uma cratera de pedras com muitas pessoas subindo e descendo as escadas improvisadas nas pedras garimpando ouro.
Sebastião Salgado

A imagem simboliza grande parte da história do Brasil, pois a busca pelo ouro gerou  um processo de transformação no país, como por exemplo, o deslocamento do eixo político-econômico da colônia para sul-sudeste e a mudança da capital para o Rio de Janeiro. Além disso, o ciclo do ouro também está ligado com a exploração de pessoas pobres e pretas que eram a maioria nesses garimpos e no fim das contas não obtiveram qualquer benefício, história essa que se repete do Brasil colônia até a república.

Pensando na fotografia em si, esse formigueiro de homens afobados pelo enriquecimento, me causa uma sensação de desespero e agonia. A grande quantidade de pessoas aglomeradas nesse local aparenta desconforto. Sinto que eles realizam um trabalho extremamente desgastante tanto físico quanto mental. A cratera também pode retratar a assimetria entre os donos dos garimpos e os homens que garimpavam, em que os donos eram quem realmente ficavam com o ouro e os outros eram somente explorados nessa cratera subindo e descendo as escadas carregando sacos pesados, ou seja, a parte de cima, plana, seria o local do explorador e, o fundo do buraco, o dos explorados. Essa desigualdade na imagem representa a mesma que existe entre ricos e pobres no país.

Uma importante característica da foto é a escolha pelo preto e branco, estilo característico de Sebastião, que proporciona uma percepção mais profunda do que se fosse colorida. Essa junção de cores gera de forma intensa uma sensação de tristeza, acredito que o autor não queria retratar o ambiente precário das pessoas que estavam no garimpo de forma positiva, então, se a fotografia fosse colorida poderia diminuir o impacto dela. Essa escolha cria uma dramaticidade necessária para a cena, porque envolve também uma crítica social da corrida do ouro que também foi uma forma de escravização na época.

Na foto, a maior parte das pessoas são negras e isso mostra como a população preta de nosso país sempre esteve na base da pirâmide, sendo explorada de todas as formas possíveis, e, no fim, dificilmente são beneficiadas. Nesse contexto, foram usadas somente como mão de obra análoga à escrava, sem qualquer direito básico, como por exemplo, equipamentos de proteção individual, e no fim quem ficou com a maior parte do ouro foram os donos dos garimpos.

Isso que ocorreu em Serra Pelada não é uma história única. É a história do Brasil, que foi construído com o sangue da população preta, que desde a colônia mantém uma sociedade escravocrata. Portanto, o garimpo de Serra Pelada diz muito sobre o Brasil do passado e também sobre o do presente. 

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CALIXTO, Vitória. O formigueiro humano em Serra Pelada. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: <https://culturafotografica.com.br/o-formigueiro-humano-em-serra-pelada/>. Publicado em: 02/02/2022. Acessado em: [informar data]

Contrastes e identidades

Através da união da fotografia com a colagem, Shirin Neshat questiona as narrativas sobre as identidades das mulheres islâmicas. 

Na série “Mulheres de Ala”, Shirin Neshat (1994), através da fotografia e da colagem, apresenta as complexidades das identidades femininas em meio a uma paisagem de mudanças pela qual passava o Islã, sendo umas delas a volta da obrigatoriedade do uso do hijab (véu islâmico).

Shirin Neshat

Ênfase no rosto de uma mulher islâmica que usa o véu (hijab) que cobre todo seu cabelo e boca,  com palavras em espiral pelo seu rosto aparente, exceto olhos. 


O uso de véus, que havia  sido abolido pelo governo de Mohammad Reza Pahlevi em 1930, voltou a ser obrigatório na década de 1980 no governo de  Aiatolá Ruhollah Khomeini. O trabalho de Shirin Neshat explora justamente a política que atua sobre os corpos das mulheres que passaram a viver com o “véu” no Islã. 


Esta exposição apresenta fotografias que buscaram dar ênfase ao íntimo da convicção pessoal e religiosa dessas mulheres.  A partir do uso dos véus e dos textos pelos seus corpos, elas têm as suas vivências e seus pensamentos expostos. 


Um bom começo para investigar o trabalho de Neshat, talvez seja refletir em nossas percepções acerca do uso do véu islâmico. Seriam as narrativas que produzimos, referente a  ele,  sustentadas apenas nos valores tradicionais religiosos da vestimenta?


Ao nos atentarmos a essa questão,  podemos explorar o nosso imaginário sobre  o que molda a experiência feminina na sociedade islâmica: o véu ou o corpo? Para além, refletir nos problemas de transposição da política de identidade feminista ocidental para as culturas islâmicas?


Shrin Neshat

Mulher ao centro da fotografia com véu islâmico (hijab), que cobre sua cabeça e ombros. Em todo o seu rosto há palavras, assim como na parte aparente do seu peito. Ela está sobre fundo branco.


Neste trabalho, Neshat cria uma nova compreensão do véu, enquanto desafia os estereótipos sobre a identidade feminina no Islã. Os contrastes entre identidade e violência, representatividade e silenciamento, são abordados em seu trabalho tanto pelo viés do véu quanto pelo uso de texto caligráfico que é aplicado a cada uma das  fotografias.


A maioria dos textos, de acordo com o site Artes e Humanidades, são transcrições de poesias e outros escritos de mulheres, que expressam múltiplos pontos de vista sobre suas experiências no Islã durante o governo de Reza Pahlevi e Aiatolá Khomeini, sendo assim as fotografias de Neshat trazem histórias e discursos sobre a identidade feminina Islâmica para além do uso do véu.  


Por causa de tudo isso, podemos refletir acerca de um trabalho fotográfico que faz uso de colagens em sua composição, com a finalidade de explorar outras narrativas acerca dos corpos das mulheres islâmicas (aquelas que estão no campo visual) e outras possibilidades de lidar com a fotografia. Assim Shirin Neshat por mais de um viés, contrasta os olhares direcionados às experiências das mulheres no Islã.




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Links, Referências e Créditos


https://www.wikiart.org/pt/shirin-neshat/untitled-roja-2016


https://www.khanacademy.org/humanities/ap-art-history/global-contemporary-apah/20th-century-apah/a/neshat-rebellious


https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47174927



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A mesa da cozinha

Fotografia de Carrie Mae Weems explora ancestralidade e feminilidade

Fotografia de Carrie Mae Weems explora ancestralidade e feminilidade

Como se tornar uma mulher? É difícil dizer em que momento da vida nós mulheres passamos a nos reconhecer como tais. A fotografia de Carrie Mae Weems tenta explorar essas questões ao trazer uma figura influente para muitas – a mãe – como fator chave para essa transformação.
Carrie Mae Weems

 

Descrição: mãe e filha sentadas sobre a mesa, a primeira no centro da imagem e a segunda a direita, as duas passam batom enquanto se olham no espelho
A série A Mesa de Cozinha (The Kitchen Table) foi lançada em 1990. Composta de vinte fotografias e diversos textos, Carrie Mae Weems explorou a experiência e a vida da mulher preta através de cenas performadas na mesa da cozinha. Atuou em todas elas, enquanto outros personagens de sua vida – marido, filha, amigos e amigas – a rodeiam em diversas fotografias.
A luminária aparenta ser a única fonte de luz na imagem, sendo responsável por clarear e revelar todas essas cenas. Em um jogo de luz e sombra, tudo aquilo que está iluminado nos dá a sensação de revelação, fazendo com que a imagem não seja apenas um olhar para o cotidiano de uma família, mas para a intimidade, os segredos e os sentimentos dessas figuras.
A fotografia acima tem a mãe – que é interpretada pela própria autora da imagem – e sua filha como os personagens principais. Elas não se olham, pelo contrário, os olhos ficam presos em suas imagens refletidas pelos espelhos postos à mesa. Isso não faz com que elas não estejam cientes da presença uma da outra, já que seus movimentos, por serem idênticos, insinuam que elas repetem  essa mesma ação já a um tempo, ou que uma se espelha na outra. A forma como as duas passam batom com a mão direita e repousam a esquerda sobre a mesa, o jeito que se inclinam e abrem a boca, e, até mesmo, a maneira em que os espelhos são  predispostos, tudo isso revela um saber inconsciente, quase como um ensaio bem coreografado do que o outro está fazendo.
Quando eu era pequena costumava brincar com os saltos altos de minha mãe. Ela, que saia de casa para o trabalho de manhã e só voltava tarde da noite, era uma figura um tanto quanto misteriosa, mas ao mesmo tempo charmosa. O salto alto que usava todos os dias não era apenas um símbolo de beleza, mas também de futuro desejável. Enquanto aqueles sapatos não me serviam, ainda não havia atingido aquele ideal imaginário que eu mesmo havia criado. Porém, apenas usá-los, enquanto via meu reflexo no espelho, já era uma forma de sanar a ansiedade de “ser mulher”. Aquela brincadeira era sobre uma feminilidade que eu desejava alcançar, era o que eu entendia como belo e  valioso.
Me peguei a pensar sobre quem está refletindo quem. Faz sentido pensar que a mãe, sendo a figura mais velha, com mais experiência de vida, acaba por influenciar a filha que, assim como eu fazia, repete cada pequeno gesto, mesmo que inconscientemente. Assim, a mãe seria o reflexo do anseio da filha, do que é belo e do que significa ser adulto. Porém, da mesma forma, e, talvez, na mesma medida, a filha é o reflexo/representação do que a mãe era com a avó, da juventude que também teve um ímpeto de crescer e agora regressa ao papel.
Ao olhar para o espelho, a mulher e a menina não veem apenas suas auto imagens, algo mais precioso está sobreposto no ato de se maquiar.  Existe também uma ancestralidade, um passar de conhecimento  de geração a geração, uma naturalidade de repetições de conceitos da experiência de vida. Para Carrie Mae Weems e sua filha, além do compartilhamento desses atravessamentos, é também o reflexo da vivência preta, de um lugar seguro,  onde mãe e filha podem encontrar em si o que significa ser feminino.
#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.

Como citar esta postagem

LISBOA, Eliade. A mesa da cozinha. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: <https://culturafotografica.com.br/a-mesa-da-cozinha//>. Publicado em: 19 de jan. de 2022. Acessado em: [informar data].

Tesão no forró

A fotografia de Nair Benedicto que pode te dar vontade de dançar ao som do forró

A fotografia intitulada “Tesão no forró” me transmite tranquilidade, entrega intensa ao momento retratado e uma sensualidade evidente. Na imagem, percebemos, em um primeiro plano, um homem e uma mulher abraçados, possivelmente dançando ao som inebriante do forró.

A fotografia mostra um local com várias pessoas. No centro, vemos um casal dançando agarradinho. Ele, vestido com uma camisa xadrez e um colete, segura a parceira pela cintura enquanto beija seu pescoço. Ela, trajada com uma blusa ou um vestido sem mangas, abraça e coloca seus braços nas costas dele.
Nair Benedicto

O casal está dançando agarradinho. Ele, vestido com uma camisa xadrez e um colete, segura a parceira pela cintura. Ela, trajada com uma blusa ou vestido sem mangas e um lenço estampado na cabeça, abraça o moço e coloca seus braços nas costas dele. O homem beija com sensualidade o pescoço da companheira e parece que ela, com os olhos fechados, se delicia com essa atitude afetuosa.

Essa fotografia me remete diretamente aos alegres momentos em que eu dançava com o meu companheiro. A tranquilidade e a entrega completa de um ao outro é uma belíssima síntese desses momentos de confiança e conforto que compartilhei com o meu parceiro. Espero que todos e todas sintam esse sentimento de cumplicidade, serenidade e sensualidade.

Nair Benedicto, responsável pelo registro, explica que, em meados do ano de 1980, estava fazendo um trabalho independente sobre segregação e discriminação contra os nordestinos e as nordestinas que viviam em São Paulo. Em decorrência disso, a curiosidade em saber e em ver como essas pessoas se divertiam foi despertada em Nair. Assim, através de algumas indicações, a fotógrafa descobriu que os e as migrantes iam a casas de forró, dentre as quais a mais conhecida era a do Mário Zan.

A imagem parece que carrega, com a dança típica nordestina, resistência e pertencimento, pois a foto gera visibilidade de uma população quase sempre marginalizada.  O forró também pode ser considerado um ato revolucionário, pois os nordestinos e as nordestinas se divertem e dançam em uma São Paulo que só os enxergam como mão de obra marginalizada.

A fotógrafa faz uso do flash devido à baixa luminosidade do local, o que faz com que a pele suada da mulher fique com um aspecto brilhante. Acho que está evidente o bem-estar e o conforto estampado no rosto e no corpo dessa mulher, com a entrega proporcionada pelo momento de afeto. Outra coisa interessante é que parece que ela não está desconfortável com a presença da câmera e nem com o que está acontecendo ao redor.

Em oposição ao conforto desta mulher, é possível perceber um jovem no canto da fotografia que nota a presença da câmera e parece haver certo incômodo em seu semblante. O corpo dele aparenta ficar mais enrijecido, por causa do aspecto tenso de suas mãos, e o movimento se esvai de seu corpo, logo dá a impressão de que o homem está parado enquanto todos dançam. O motivo do incômodo, nós nunca saberemos.

#galeria é uma coluna de caráter informativo, com periodicidade semanal. É publicada toda terça-feira pela manhã. Trata-se de uma série de postagens que apresenta um recorte da obra de uma fotógrafa ou fotógrafo de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica, acompanhadas por uma breve biografia sua. Quer conhecer melhor a coluna #galeria? É só seguir este link.

Links, Referências e Créditos

 Como citar essa postagem

HELENA, Beatriz. Tesão no forró. Cultura Fotográfica. Disponível em: https://culturafotografica.com.br/tesao-no-forro/. Publicado em: 12 de jan. de 2022. Acessado em: [informar data].

Símbolos e nacionalismos

Mustafa Hassona, nos instiga com sua fotografia que evoca o quadro “A Liberdade guiando o povo” e a História de Davi e Golias. 

A imagem a seguir foi registrada por Mustafa Hassona na Faixa de Gaza no ano de 2018. Os conflitos que até hoje não cessaram, fazem parte da vida de Palestinos e Israelenses, que disputam o território no Oriente Médio. Na imagem observamos um homem segurando uma bandeira palestina e  girando uma funda.



Mustafa Hassona

A Palestina é uma área da região oriental do Mediterrâneo, que compreende partes de Israel e os territórios da Faixa de Gaza (ao longo da costa do Mar Mediterrâneo) e da Cisjordânia (a oeste do Rio Jordão).

Tanto a área geográfica designada Palestina, quanto o status político dela, mudaram ao longo de três milênios atrás.  A região (ou pelo menos parte dela), também é conhecida como Terra Santa e é considerada sagrada para judeus, cristãos e muçulmanos. Desde meados do século XX, ela é objeto de reivindicações conflitantes de movimentos nacionalistas judeus e árabes.

A cena registrada por Mustafa Hassona em 2018, evoca vários símbolos de luta e resistência. Ela foi muito comparada com a narrativa dos personagens bíblicos Davi e Golias, assim como com a pintura “A Liberdade guiando o povo” (imagem seguinte), do artista francês Eugène Delacroix. 

O homem em primeiro plano, no centro da fotografia, destaca-se e dá o enredo principal à narrativa fotográfica. Ele carrega a bandeira do seu país (Palestina, uma das presenças que evocam a pintura de Delacroix) e gira uma funda (que evoca a história de Davi e Golias). Tais símbolos evidenciam uma luta coletiva e de representatividade, ou seja, a reivindicação não é somente ligada a um sujeito.

Postas estas questões, poderia o fotojornalista, ter pensado acerca dessas proximidades? 
Obviamente a provocação é clara, aliás os símbolos são fortemente trabalhados na sua fotografia. Podemos perceber isso pelo ângulo frontal da foto que dá destaque ao protagonista, à bandeira e a funda.

Tais evidências, nos mostram que existe uma cultura atuante em conflitos nacionalistas. Se pensarmos em Davi e Golias, ainda não estamos falando da construção de uma nação, mas estamos operando com símbolos que representam a luta de um povo.

As lutas sociais, portanto,  estão diretamente ligadas a esses símbolos de representatividade. Tanto na fotografia de Hassona, quanto no quadro de Delacroix, a bandeira e as armas, acentuam essa característica da reivindicação nacionalista.


Delacroix. A liberdade guiando o povo, 1830.

Há outra questão muito interessante para pensarmos a comparação da fotografia com pintura. A câmera fotográfica, tecnologia que surgiu em meados do XIX, foi vista com bastante relutância na época. Baudelaire dizia que a fotografia era um tipo de refúgio ao qual se apega “todos os pintores frustrados”, aliás considerava-se a imagem fotografada resultado da máquina e não do artista.

Todavia o desenvolvimento da  história da arte e da semiótica (estudo da imagem), fluem direção contrária à essa perspectiva. Percebemos por meio desses estudos que tanto o olhar do fotógrafo para a cena, quanto as técnicas por ele trabalhadas juntas a fotografia constituem o enredo do seu trabalho.

Sendo assim, por meio dessa fotografia de Mustafa Hassona observamos esses dois contrapontos: o da presença de uma luta nacionalista no Oriente Médio e da potencialidade e possibilidades dos registros fotográficos. Porquanto essas considerações trazem à tona a importância do olhar do fotógrafo/artista e a presença das suas referências nos resultados finais de suas narrativas.

#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quarta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.


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https://www.artequeacontece.com.br/fotografia-e-pintura-da-rivalidade-ao-entrosamento/


https://www.leica-oskar-barnack-award.com/en/series-finalists/2019/mustafa-hassona.htmlLorem ipsum dolor sit amet.


https://www.all-about-photo.com/photographers/photographer/784/mustafa-hassona


https://www.leica-oskar-barnack-award.com/en/series-finalists/2019/mustafa-

hassona.htmlLorem ipsum dolor sit amet.


https://www.all-about-photo.com/photographers/photographer/784/mustafa-hassona


O abutre e a menina

A foto que evidenciou a fome no Sudão e entrou para a história do fotojornalismo

A foto que evidenciou a fome no Sudão e entrou para a história do fotojornalismo 

O abutre e a menina é uma fotografia feita por Kevin Carter, em 11 de março de 1993, no Sudão, momento em que o país sofria uma guerra civil e enfrentava sua maior crise humanitária no século XX. A foto, que retrata uma situação de miséria e medo, mostra um abutre olhando para uma criança esquelética.

Kevin Carter 

A produção dessa foto foi possível em função de uma ação da Organização das Nações Unidas (ONU) para sensibilizar a opinião pública internacional em relação à situação de penúria da população sudanesa. Para isso, a ONU convidou dois fotojornalistas para integrar a comitiva que foi para o sul do Sudão: Kevin Carter e João Silva.

O momento em que Kevin registra a foto do abutre e a menina é quando está nesse campo a céu aberto, acompanhando a distribuição de alimentos pelos funcionários da ONU e esperando alguma possibilidade de clique, até que encontra a cena da ave olhando para a criança.

Foi essa imagem do abutre e a menina que pouco tempo depois foi publicada no jornal The New York Times e replicada em todos os grandes jornais do mundo e fez Carter ganhar grande visibilidade e a fome no Sudão ser vista e a ONU arrecadar doações para o país. Além disso, no ano seguinte, em 1994, o fotógrafo ganhou o prêmio Pulitzer de fotografia.

Após a publicação dessa foto, Kevin teve sua postura questionada pela opinião pública que queria saber o que aconteceu com a menina e se ele a teria ajudado. Ele conta que espantou o abutre e que sentou e chorou debaixo de uma árvore. Depois também disse que a menina se levantou e caminhou até a clínica médica, onde João Silva estava fotografando. Porém, a opinião pública não ficou satisfeita com essas explicações e indagou porque ele não levou a menina para um lugar seguro.

Toda essa história gerou um debate sobre a atuação de jornalistas e fotojornalistas em cenários de guerra, se eles deveriam prestar assistência ou apenas seremos observadores. Todos esses questionamentos perturbaram muito Carter, que não soube lidar com a situação, pois já enfrentava uma série de problemas pessoais como depressão, relacionamentos amorosos mal sucedidos, uso abusivo de álcool e outras drogas e endividamento. Assim, no dia 27 de julho de 1994, aos 33 anos, ele levou seu carro até um local de sua infância e cometeu suicídio.

Uma descoberta importante dessa foto é que apesar de todos acharem que era uma menina na foto, na verdade, era um menino. Uma equipe de jornalistas voltou para a aldeia de Ayod, no Sudão, para reconstruir a história daquela fotografia e tentar descobrir quem era a criança, e nisso, descobriram que era um menino chamado Kong Nyong. Com essa pista, dois dias depois, a equipe chegou à família do menino. O pai confirmou que a criança da foto de Kevin Carter era seu filho e que ele se recuperou da desnutrição e sobreviveu. O pai também disse que Kong morreu já adulto em 2006, devido a uma forte febre.

Para além de toda história por trás da foto, a relação do abutre e da menina, que parece ser somente de presa e predador, me transmite, de forma subjetiva, uma denúncia da própria ave da situação precária que a criança estava, ou seja, o abutre também tem o papel de evidenciar que aquela criança precisava de ajuda.

Uma outra perspectiva que me desperta da fotografia é como essa foto feita há 30 anos atrás em um país localizado do outro lado do oceano atlântico remete a situação atual de fome que o Brasil enfrenta, em que o abutre ali presente pode ser representado como o governo atual brasileiro, que não cria soluções para resolver o problema e somente fica observando agravar. Já a criança pode ser representada como os 19,1 milhões de brasileiros já atingidos pela fome, conforme dados da CNN Brasil. A imagem mostra a situação do Sudão naquele momento, mas também faz alusão a outros momentos trágicos que o mundo vive, como a pandemia de COVID-19 que acentuou a fome.

A foto no meu ver propõe uma reflexão sobre como nós, sociedade, lidamos com as desigualdades que atravessam as pessoas. Seríamos nós abutres que ficam só observando sem tomar qualquer atitude e esperando ¨apodrecer¨ ?  É sobre pensar em humanidade e alteridade.

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Links, Referências e Créditos 

Como citar este artigo

CALIXTO, Vitória. O abutre e a menina. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: <https://culturafotografica.com.br/o-abutre-e-a-menina/>. Publicado em: 24/11/2021. Acessado em: [informar data].

O menino do Rio Negro

Fotografia de Araquém de Alcântara evoca o equilíbrio entre gente e meio ambiente
Um jovem segura uma cobra em volta de seu pescoço, ao que tudo indica, durante um passeio de canoa no Rio Negro, Amazonas. A cena não só expressa uma beleza única, como também é um portal para entendermos como o fotógrafo responsável pela obra, Araquém de Alcântara, enxerga o mundo. 
Araquém de Alcântara

Esse cenário pode ser considerado incomum para muitos que não vivem na região. Em uma visão centrada no sudeste do país, a princípio me peguei estranhando tal comportamento a ponto de considerá-lo perigoso e impróprio. Porém, ao refletir um pouco sobre o personagem presente no registro e as prováveis diferenças culturais que compartilho com ele, comecei a reconhecer que alguns desses sentimentos partiam de minha ignorância.
Ao contrário de mim, Araquém de Alcântara parece enxergar a beleza desse encontro entre os dois, uma vez que registra o momento como algo singelo e despreocupado, expressando uma das características mais fortes do seu trabalho, mostrar a relação íntima entre seres humanos e o meio ambiente.    
A forma como o garoto segura o animal, de maneira firme e decidida denota a sua naturalidade com a situação. Não parece temer um ataque da cobra, pelo contrário, tamanha frivolidade ao lidar com a situação denuncia que talvez não seja a primeira vez que vivencia algo do tipo. 
O preto e branco da imagem existem por conta do caráter documental da obra do fotógrafo. No entanto, esse elemento ajuda a criar um fator harmônico entre os personagens. Esse bom relacionamento entre os dois cria uma sensação de sustentabilidade que é reforçada pela retirada das cores, fazendo com que os dois corpos sejam difíceis de distinguir. 
Uma das questões que a fotografia levanta é “se é possível viver em paz com animais selvagens”. Afinal, não são todos que reagiriam de maneira tão pacífica quanto aquela cobra. O cenário e momento escolhidos, mostram como esse encontro entre dois moradores da mesma região, só é possível pelos dois personagens serem familiares um com o outro.
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Garota americana na Itália

A história por trás da fotografia de Ruth Orkin e minhas impressões acerca dela

A fotografia, feita em 1951, retrata uma mulher que caminha sozinha por uma rua que está cheia de homens, quinze figuras masculinas no total.  A grande maioria deles a encaram com “olhares de abutre”. O homem, à sua direita, assobia ou fala algo enquanto ela passa. Enquanto o outro, a sua frente, permanece parado enquanto olha para ela, como se quisesse impedir  sua passagem.

Ruth Orkin

A mulher me parece aflita, ansiosa e incomodada com a situação. Seus olhos apontam para o chão, como se  quisesse evitar ou se desviar dos olhares desses homens. Ela segura seu xale com a sua mão direita e com a esquerda, um caderno e uma bolsa. Tenho a impressão de que seus passos são rápidos e apressados e que por isso segura suas coisas com tanta força.

A fotógrafa que capturou a imagem foi a americana Ruth Orkin. Durante uma viagem pela Itália, conheceu a jovem Ninalee Allen, mulher que aparece na fotografia. Ninalee tinha acabado de se formar em Ciências Humanas e havia atravessado sozinha o Atlântico em uma viagem de navio. Além disso, Ninalee se hospedou no mesmo hotel que a fotógrafa quando viajou para a Itália.

Quando Ruth Orkin conheceu Ninalle Allen, a fotógrafa teve a ideia de fazer um ensaio sobre o cotidiano de uma mulher sozinha em viagens. Era para ser algo leve e divertido. Entretanto, dentre as várias fotografias tiradas naquela manhã em Florença, uma delas se transformou em um retrato de assédio sexual.

A fotógrafa conta que pediu para os homens não olharem para a câmera quando tirou a fotografia acima. Com esta instrução em mente, eles passaram a encarar Ninalee Allen, ato que deu um aspecto estranho para a imagem. Mesmo que Allen diga que não se incomodou com os olhares masculinos, penso que a fotografia retrata o triste e cansativo cotidiano de mulheres em um mundo machista. Recebemos olhares e cantadas que não pedimos, que nos objetificam e nos deixam extremamente desconfortáveis.

Na visão de Ninallee pode não ter ocorrido assédio, pois ela conta que não se sentiu incomodada. Entretanto, alguns aspectos e conceitos mudam com o passar dos anos. Há transformações, novas leituras de textos, fotografias, visões de mundo. Portanto, penso que no momento em que eu me encontro agora, esta fotografia é um retrato de assédio sexual. Como você a vê?

Essa fotografia me lembrou da música “Garota de Ipanema”, escrita por Tom Jobim e Vinicius de Moraes, pois  a canção apresenta uma mulher passando pela rua e sendo observada por homens. Será que ela se sentiu incomodada no momento em que passava? Me parece que a letra normaliza esses  tipos de atitudes, em que a percepção de que  encarar uma mulher passando pela rua são tratadas como se fosse algo normal. Muitas mulheres carregam marcas e cicatrizes por causa dessas representações.

 #leitura é uma coluna de caráter reflexivo. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, histórica, política e social. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor as postagens da coluna? É só seguir este link.

Links, Referências e Créditos

Como citar essa postagem

HELENA, Beatriz. Garota americana na Itália. Cultura Fotográfica. Publicado em: 10 de nov. de 2021. Disponível em: https://culturafotografica.com.br/garota-americana-na-italia-2/. Acessado em: [informar data].

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