A Terceira Classe

A desigualdade econômica num dos mais luxuosos navios do início do século xx.

A desigualdade econômica num dos mais luxuosos navios do início do século xx.

Feita em 1907 pelo fotógrafo Alfred Stieglitz, a fotografia retrata o convés do Kaiser Wilhelm II, um navio de cruzeiro, feito para ser o mais luxuoso de sua época, que, no momento retratado, zarpava dos Estado Unidos rumo à Europa.  Na foto, podemos ver o deck superior, destinado aos passageiros de primeira classe, pessoas mais abastadas, e o deck inferior, destinado aos passageiros da terceira classe.

Na foto, podemos ver o deck de um navio. Ele é dividido em dois andares diferentes os quais estão abarrotados de pessoas. Uma escada forma uma linha horizontal no meio da fotografia dividindo os dois andares do navio
Alfred Stieglitz

É difícil olhar para a fotografia e não lembrar do filme Titanic, um clássico do cinema, dirigido por James Cameron, que conta a história do amor de um casal que embarca no navio e é separado pela divisão das classes que lá ocorre. Coincidentemente, o Titanic, foi construído alguns anos depois desta foto, justamente para superar o Kaiser Wilhelm II nas questões de velocidade e luxo. 

Assim como o longa, a foto escancara a desigualdade social da época de uma maneira bem clara. No centro da imagem, a ponte traça  uma linha imaginária entre os dois grupos de pessoas. Na parte superior, percebe-se que os indivíduos ali presentes são da classe mais abastada, tanto pelo fato de estarem em um patamar superior aos de baixo, como pelo fato de um dos homens estar usando um chapéu Paris de palha, símbolo da elite francesa do final do século XIX e início do século XX.  Abaixo deles, e do outro lado da linha imaginária, podemos ver a terceira classe sendo representada por mulheres e crianças.   

É interessante pensar como a fotografia mostra não somente como as pessoas eram segregadas  baseadas em suas situações econômicas, mas também sobre como os equipamentos fotográficos estavam longe de ser acessíveis. O ângulo a partir do qual a foto foi feita coloca o fotógrafo no mesmo patamar que a alta classe, a câmera olha para os mais pobres assim como os ricos: de cima para baixo. 

Isso me faz  questionar as afirmações sobre as fotografias terem  democratizado as imagens. Com o advento da reprodução técnica, muitos  passaram a  ter acesso a imagens que retratavam lugares, pessoas e obras de arte que eles nunca veriam sem a fotografia. Entretanto, a democracia é uma via de mão dupla, já que todos devem ouvir e serem ouvidos em um regime democrático. Na fotografia, devido aos equipamentos caros e de difícil acesso, era raro que pessoas das classes mais baixas pudessem fotografar. Sendo assim, milhares de pessoas de classes, etnias, religiões e nacionalidades foram retratadas apenas por um olhar eurocêntrico, vindo de homens brancos e ricos.

É inegável que Stieglitz foi bem intencionado ao produzir essa fotografia, mas também é perceptível que o fotógrafo, talvez devido às amarras sociais, não optou por fotografar as pessoas da baixa classe de um ângulo normal. Mesmo que essa foto tenha sido feita a mais de 100 anos atrás, essa atitude de muitos fotógrafos de não  retratar minorias e pessoas pobres de um ângulo que não o da miséria e sofrimento, não exaltando essas pessoas, persiste até hoje.

O problema atual não é necessariamente a falta de acesso aos equipamentos fotográficos, já que hoje contamos com  smartphones munidos de câmeras com preços relativamente acessíveis. Contudo, mais uma vez, a  visão produzida por pessoas que não pertencem às elites econômicas se encontra ofuscada, desta vez, por padrões técnicos e estéticos. Esses são os principais norteadores dos algoritmos das redes sociais, que têm a capacidade de identificar várias características de fotografias indo desde o equipamento usado até a cor da pele das pessoas da foto. Com isso, eles priorizam imagens feitas com smartphones mais caros e que retratam pessoas brancas.

Esta fotografia me entristece, não só pelas condições precárias em que alguns se encontram enquanto outros desfrutam do luxo , mas pela terrível continuidade dos fatores presentes nela. Um século depois e a sociedade continua ridiculamente desigual, um século depois e as pessoas que controlam os meios midiáticos continuam o projeto de abafar a voz dos oprimidos.

#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.

Links, Referências e Créditos

  • ANG, Tom; Fotografia: O Guia Visual Definitivo do Século XIX à Era Digital; São Paulo; PubliFolha; 2015.

Alfred Stieglitz

Fotógrafo do movimento pictorialista e militante da ideia de fotografia como arte. 

O fotógrafo Alfred Stieglitz nasceu nos Estados Unidos em 1864. Foi uma figura que colaborou muito para a disseminação da ideia de que a fotografia também pode ser uma forma de arte, já que em seus primórdios ela era vista mais como um truque científico ou como uma ferramenta auxiliar do que como uma forma de expressão artística.
Em primeiro plano, podemos ver um homem de costas para a câmera, ele usa um sobretudo e um chapéu. Na frente dele existem quatro cavalos atrelados a um bonde. Ao fundo, podemos ver a entrada de um imponente prédio.
Alfred Stieglitz

Ele foi estudante de engenharia  mecânica, mas quando participou de uma aula de química com o fotógrafo e químico Hermann Wilhelm Vogel, Stieglitz se interessou pelos processos de revelação de filmes fotográficos e ao estudar o assunto acabou apaixonado pela fotografia.
Ele se associou ao Camera Club of New York, onde foi editor do jornal interno do clube. Por boa parte de sua carreira, ele sempre foi muito perfeccionista com suas fotografias em relação aos aspectos técnicos, buscando fotos extremamente nítidas. Porém ao conhecer o trabalho de fotógrafos adeptos ao pictorialismo, ele mudou os rumos de sua arte e passou a fazer fotografia buscando imitar a estética das pinturas, se tornando um dos primeiros fotógrafos a ter seus trabalhos publicados em museus dedicados às artes plásticas. 
A foto é em preto e branco e nela podemos ver apenas um conjunto de estreitas nuvens dispostas uma do lado da outra
Alfred Stieglitz

Na foto, podemos ver o deck de um navio. Ele é dividido em dois andares diferentes os quais estão abarrotados de pessoas. Uma escada forma uma linha horizontal no meio da fotografia dividindo os dois andares do navio
Alfred Stieglitz

A foto é em preto e branco e nele podemos ver uma rua coberta de neve. Mas ao fundo é possível ver uma carruagem puxada por dois calos parece estar se afastando do fotografo deixando marcas no chão
Alfred Stieglitz

A foto é preto e branco e nela podemos ver um conjunto de nuvens que parecem estar formando figuras abstratas no céu
Alfred Stieglitz

#galeria é uma coluna de caráter informativo, com periodicidade semanal. É publicada toda segunda-feira pela manhã. Trata-se de uma série de postagens que apresenta um recorte da obra de uma fotógrafa ou fotógrafo de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica, acompanhadas por uma breve biografia sua. Quer conhecer melhor a coluna #galeria? É só seguir este link.

Links, Referências e Créditos 

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