Shomei Tomatsu e a Globalização

Foto expressa críticas à invasão da cultura norte-americana no Japão.

Foto expressa críticas à invasão da cultura norte-americana no Japão.

A fotografia foi feita no ano de 1959. Nela é possível perceber vários elementos que são metáforas para o ressentimento que muitos japoneses, incluindo o autor da foto, tiveram após os ataques nucleares nas cidades de Hiroshima e de Nagasaki e a ocupação dos Estados Unidos.
No primeiro plano da foto, podemos ver uma criança japonesa inflando uma bolha de sabão, que cresce a ponto de quase cobri-la. Ao fundo, vemos um marinheiro americano uniformizado, logo atrás dele vários letreiros com palavras escritas em inglês.
Shomei Tomatsu

Após os Estados Unidos lançarem bombas atômicas nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, matando mais de 100 mil pessoas, o Japão assinou sua rendição no dia 2 de setembro de 1945. Com isso, os EUA iniciaram a ocupação da ilha que durou até 1951. O intuito da ocupação era certificar-se de que o Japão não iria voltar a pôr em prática sua política expansionista e impedir que países soviéticos pudessem passar a exercer influência sobre a população e os governantes.

Durante o período da ocupação, os EUA se prontificaram a ajudar financeiramente o Japão, que estava em uma terrível crise econômica devido às exorbitantes perdas ocasionadas pela Segunda Guerra Mundial. Nesse tempo em que os Estados Unidos exerceram forte influência no país, muito da cultura e dos costumes americanos foram inseridos no cotidiano japonês. Com isso, o Japão entrou em uma fase na qual boa parte de seus habitantes passaram a consumir a cultura norte-americana, além de reproduzirem os hábitos característicos de países capitalistas, como por exemplo o consumismo desenfreado.

Muitos japoneses passaram a se ressentir ainda mais com os Estados Unidos, país que não somente foi responsável pela morte de centenas de pessoas , mas também pelo apagamento da cultura japonesa.

E é esse sentimento que Shomei Tomatsu expressa em sua fotografia. Ao fundo podemos ver vários indícios da cultura norte-americana no país. Todos os letreiros estão escritos em inglês, sendo possível identificar palavras como “bar”, “oásis”, “welcome”, “club” e “jazz”. E claro, também podemos ver um marinheiro americano uniformizado parado logo abaixo dos letreiros.

Em contraponto a isso, vemos uma garotinha japonesa em primeiro plano. Ela está inflando uma bolha de sabão, que cresce ao ponto de cobrir boa parte de seu corpo, dando a impressão de que ela está dentro de algum tipo de “redoma protetora”. Além disso, podemos ver também que atrás dela há vários ideogramas do alfabeto japonês escritos em um cartaz, eles também parecem estar envoltos nessa “redoma” metafórica criada pela bolha.

Através dessa análise, podemos traçar grandes paralelos com o ressentimento dos japoneses. Na foto, a cultura norte-americana está cercando a cultura japonesa por todos os lados, ocupando um maior espaço. O ressentimento é representado na imagem, justamente pela posição de todos os elementos, que deixam os ícones  referentes aos americanos ocuparem a maior parte da composição, enquanto o que resta da cultura do Japão está reduzido a apenas um pequeno círculo. A cultura do país retratada na fotografia está encolhendo e sumindo, dela resta apenas uma bolha, que assim como na fotografia está prestes a estourar.

#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.

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CAVALHEIRO, Pedro Olavo Pedroso. Shomei Tomatsu e a Globalização. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: <https://culturafotografica.com.br/shomei-tomatsu-e-a-globalizacao/>. Publicado em: 25 de maio de 2022. Acessado em: [informar data].

Shomei Tomatsu

Retratou o Japão pós guerra, abordando temas que vão desde os ataques a  Nagasaki e Hiroshima até a invasão da cultura estadunidense em seu país

Retratou o Japão pós guerra, abordando temas que vão desde os ataques a  Nagasaki e Hiroshima até a invasão da cultura estadunidense em seu país

Tomatsu, iniciou sua carreira na fotografia enquanto estava no curso de economia da universidade de Aichi, onde foi responsável por fotografar os protestos estudantis, os quais ele era um grande apoiador. Seu primeiro trabalho de importância foi a exposição “Jünin no me” (Olhos de Dez), ocorrida em 1957.

 
A foto é em preto e branco e consiste basicamente em uma garrafa plástica derretida, que devido a sua textura e a maneira com que esta retorcida se assemelha a uma carcaça em decomposição.
Shomei Tomatsu

Juntamente com os outros fotógrafos que participaram da Jünin no me, foi fundador da cooperativa Vivo, que mesmo tendo existido apenas de 1959 a 1961 teve um grande impacto na fotografia japonesa da época, já que abordou temas extremamente pertinentes, como os ataques nucleares às cidade de Hiroshima e Nagasaki, a ascensão de partidos de extrema direita e a invasão da cultura estadunidense, que gerou no Japão pós-guerra uma cultura de consumismo desenfreado.   

Porém, Tomatsu não se destacou apenas por ter abordado esses temas, mas sim pela maneira que o fez. Diferentemente dos fotógrafos ocidentais da época, ele fugia da objetividade, já que suas fotografias focam em  temas sensíveis de maneira extremamente sutil e subjetiva. Um bom exemplo disso é a foto que abre essa publicação, pois ao se referir aos ataques nucleares Tomatsu foge do olhar ocidental que buscava mostrar pessoas mutiladas e doentes devido à radiação. Em vez disso, ele consegue causar no espectador muito mais desconforto e repulsa pelas bombas nucleares apenas com uma garrafa plástica.

#galeria é uma coluna de caráter informativo, com periodicidade semanal. É publicada toda terça-feira pela manhã. Trata-se de uma série de postagens que apresenta um recorte da obra de uma fotógrafa ou fotógrafo de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica, acompanhadas por uma breve biografia sua. Quer conhecer melhor a coluna #galeria? É só seguir este link.

 

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OLAVO, Pedro. Shomei Tomatsu. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em:<https://culturafotografica.com.br/shomei-tomatsu/>. Publicado em: 23 de mai. de 2022. Acessado em: [informar data].
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A Iconografia Fascista

A maneira com que uma única fotografia consegue retratar a iconografia fascistas presente em um governo.

A maneira com que uma única fotografia consegue retratar a iconografia fascistas presente em um governo.

A imagem  abaixo foi feita pelo fotojornalista Pedro Ladeira, no dia 31 de maio de 2020, nesta data o presidente havia participado de manifestações em apoio ao seu governo e aos atos antidemocráticos como a intervenção militar e o fechamento do congresso nacional e do Supremo Tribunal Federal  (STF)

Em primeiro plano, vemos uma fileira de policiais militares uniformizados. Logo atrás deles está o presidente Jair Bolsonaro montado em um cavalo, ele está vestido com uma camisa azul e calças jeans, ao seu lado se encontram mais policiais. Ao fundo é possível notar a presença dos apoiadores do presidente vestidos de verde amarelo e balançando bandeiras do Brasil.
Pedro Ladeira

Quando foi publicada, a foto recebeu grande repercussão nas redes sociais, boa parte delas foram de pessoas contra o governo de Bolsonaro, mas também muitos a utilizam para exaltar a força do presidente e escreveram mensagens de apoio. O que é interessante de se notar  é que a foto possui vários aspectos que podem ser diretamente relacionados às fotografias de propagandas de governos de extrema direita durante a história.

A maioria desses aspectos são utilizados para enaltecer a figura do grande comandante. Na iconografia fascista é muito comum que o líder seja representado como um homem capaz de guiar  exércitos de seu país contra seus “inimigos” e levar seu povo à salvação. Por essa razão, era comum que os líderes de extrema direita sempre aparecem rodeados por seu exército, assim como na foto a baixo. A foto de Ladeira mostra muito bem esse aspecto, já que logo no primeiro plano podemos ver a polícia militar além de vários agentes ao lado do presidente.

No centro da fotografia podemos ver Benito Mussolini, ele caminha ao meio de vários soldados, todos estão uniformizados e alguns seguram fuzis.
Autor Desconhecido

Além do exército, o fato do  líder estar em cima de um cavalo também remonta diretamente a iconografia fascista, que por sua vez se apropria da iconografia medieval, já que nesta, o cavalo era comumente utilizado para representar a nação, logo um bom cavaleiro era relacionado a um bom governante. Nesse caso específico, além do cavalo também é possível ver um cassetete preso à sela, o que também contribui para a afirmação de virilidade do líder, já que armas como espadas, pistolas e fuzis que são objetos amplamente utilizados como ferramentas de repressão, aparecendo fartamente nos retratos de governos fascistas como validação de força. Na imagem abaixo vemos uma pintura de Adolf Hitler que traz os mesmos elementos. 

Na pintura podemos ver Adolf Hitler montado em uma cavalo, vestindo uma armadura de placas de metal. Ele segura a bandeira vermelha do partido nazista em sua mão direta.
Pintura de Hubert Lanzinger

Além do líder viril cercado por seu imponente exército, essa fotografia ainda apresenta mais um fator comum entre o Bolsonarismo e os governos de extrema direita antes deles. Ao fundo, podemos ver a bandeira do Brasil tremulando, logo ao lado da cabeça do presidente, isso remete ao ultranacionalismo, característica primordial de ideologias fascistas e muito presente nos discursos de Jair. Na foto de Plínio Salgado, que está logo abaixo, é um outro exemplo da utilização do nacionalismo na iconografia fascista. 

Na foto podemos ver Plínio Salgado, líder do movimento integralista brasileiro, discursando em um palanque com a bandeira brasileira ao fundo.
Autor Desconhecido

A fotografia capta desde o forte apoio aos militares, a fixação bélica que ecoa em seus discursos em favor do afrouxamento das leis de restrição ao porte de armas, a idealização de uma masculinidade nociva focada em discursos cis heteronormativos, misóginos e homofóbicos e é claro o ultranacionalismo, figurinha repetida em todos os discursos do presidente que retratam uma pátria devastada que precisa ser salva independentemente de como. 

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CAVALHEIRO, Pedro Olavo Pedroso. A Iconografia Fascista. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em:<https://culturafotografica.com.br/a-iconografia-fascista/>. Publicado em: . Acessado em: [informar data].

Guerrilheiro Heroico

A história por trás de uma das fotografias mais reproduzidas e cultuadas da atualidade. 

A história por trás de uma das fotografias mais reproduzidas e cultuadas da atualidade.

A fotografia de Alberto Korda retrata o guerrilheiro revolucionário Ernesto “Che” Guevara de la Serna e é uma das mais replicadas do mundo. Até hoje, ela contribui para disseminar a imagem de Guevara e pode causar diferentes sensações em quem a vê.

Na foto, podemos ver Che Guevara em um ângulo baixo e no centro  da imagem. Ele está usando uma boina com uma estrela no meio, parece olhar para cima e tem um semblante sério. A esquerda, podemos ver parte do rosto de um homem e à direita, algumas folhas de árvore.
Alberto Korda

A foto foi feita no dia cinco de março de 1960, durante uma cerimônia fúnebre para as vítimas da explosão do cargueiro La Cumbre, acontecimento que matou mais de 100 pessoas e deixou cerca de 200 pessoas feridas. Che estava descendo do palanque no qual discursara para os familiares das vítimas quando Korda tirou a fotografia.

Na foto, o revolucionário aparece com um semblante sério e obstinado. O ângulo, contre-plongée, ajuda a dar para ele uma dimensão heróica, amplificada por suas feições ásperas. Entretanto, a interpretação dessa foto varia conforme a perspectiva política do espectador. Para aqueles que se opõem aos feitos e as ideias de Guevara, essas mesmas feições e esse mesmo ângulo mostram um homem cruel, violento e vilanesco.

Milhares de pessoas se utilizam dessa fotografia com diversos fins, alguns deles muito irônicos. Muitos a cultuam como um artigo religioso e comparam o comandante com o próprio Jesus Cristo, sem considerar o fato de Guevara inúmeras vezes ter assumido ser ateu. Muitos simpatizantes de partidos neonazistas também ostentam a imagem de Che, mesmo que ele se opusesse veementemente aos ideais fascistas.

Vítima da reprodutibilidade técnica da imagem, a figura de Che Guevara parece ser uma “carta coringa”, utilizada para se encaixar nas mais inúmeras narrativas. Isso provavelmente se deve ao fato da simplicidade da composição da foto. Nela, vemos um homem bonito, sério, com cabelos longos e traços fortes. Esse arquétipo é facilmente colocado em qualquer narrativa.

Não é complexo traçar paralelos entre Che e Jesus Cristo, já que muitos os consideram homens  belos, altruístas, que lutavam pela justiça e pelos pobres e  pelos necessitados. Entretanto, também é fácil de comparar Che ao próprio diabo, devido ao fato de ambos serem descritos como charmosos, bons com as palavras, violentos e cruéis. Essa imagem encaixa perfeitamente em qualquer ponto destes dois extremos de bem e mal, ele pode ser Robin Hood, Drácula, Luke Skywalker e Darth Vader.

A técnica fotográfica tem por prioridade apenas um único fim, a reprodução em massa e a venda desenfreada, sendo assim, ela dissemina apenas a ideologia do mercado, independente dos pensamentos das pessoas fotografadas. É como se ela retirasse daquele homem toda sua história e o transformasse em uma página em branco. Talvez seja essa maleabilidade da imagem que fez com que a foto se tornasse tão famosa.

Com isso, é difícil discordar dos ensaios em que Walter Benjamin escreve sobre a ausência da aura na fotografia.  Essa imagem nunca carregou se quer uma sombra da essência do Che Guevara real. Porém, ela poderia, com toda certeza, ser utilizada para defender as mesmas ideias que ele defendia, mas isso depende somente de quem se utiliza da foto e de quais ideais são proclamados em seu discurso.

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OLAVO, Pedro. Guerrilheiro Heroico. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em:<https://culturafotografica.com.br/guerrilheiro-heroico/>. Publicado em: 16 de fev. de 2022. Acessado em: [informar data].

Raghu Rai

Fotógrafo que luta pela desconstrução dos estereótipos indianos perpetuados na cultura ocidental.

Fotógrafo que luta pela desconstrução dos estereótipos indianos perpetuados na cultura ocidental.

Rai nasceu na aldeia de Jhang , Punjab , na Índia Britânica, atual Paquistão, em 1942.  Ele iniciou sua carreira de fotógrafo em 1965, um ano depois  foi contratado como editor de fotografia do jornal The Statesman. Em 1971,  exibiu seus trabalhos na Galeria Delpire em Paris, a exposição foi tão bem sucedida que ele foi convidado a participar da agência Magnum.

Raghu Rai

Suas fotografias variam entre o preto e branco e o colorido e todo seu trabalho é focado em seu país natal. Rai produziu uma extensa obra de vários locais da Índia, mostrando suas tradições culturais e religiosas, que contribui muito para a desconstrução da visão estereotipada do país, construída na cultura ocidental.  

Ele produziu trabalhos importantíssimos acerca de vários acontecimentos históricos na Índia, que retratam desde as ações de caridade feitas por Madre Teresa de Calcutá até o desastre químico de Bhopal, um vazamento de gás em uma indústria química que intoxicou mais de 50 000 pessoas. Ele tem como pilar do seu trabalho o “darshan”, uma filosofia que prega uma observação aprofundada do mundo percebendo desde seus aspectos imagéticos até suas vibrações e energias.

Na imagem podemos ver um rio cercado por altas construções de pedra. No canto superior da foto podemos ver um garoto saltando de cima de ema das construções em direção a agua.
Raghu Rai
No primeiro plano da imagem podemos ver uma mulher abaixada. Ela parece estar cozinhado algo em uma panela que esta disposta sobre um fogueira no chão. Ao fundo podemos ver vário canos empilhados formando um padrão composto por vários círculos no fundo da foto. É possível ver várias pessoas deitadas dentro dos canos
Raghu Rai
NA foto podemos ver uma mulher com trajes  típicos da cultura hindu. Ela esta  com os olhos fechados enquanto fala em um microfone disposto a poucos centímetros de seu rosto
Raghu Rai
Na foto podemos ver uma rua extremamente movimentada e caótica. É possível ver uma enorme quantidade de pessoas andando a pé e em charretes, seguindo variados rumos. Muitas delas carregam variadas mercadorias
Raghu Rai

#galeria é uma coluna de caráter informativo, com periodicidade semanal. É publicada toda terça-feira pela manhã. Trata-se de uma série de postagens que apresenta um recorte da obra de uma fotógrafa ou fotógrafo de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica, acompanhadas por uma breve biografia sua. Quer conhecer melhor a coluna #galeria? É só seguir este link.

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  • Raghu Rai Foundation
  • ANG, Tom; Fotografia: O Guia Visual Definitivo do Século XIX à Era Digital; São Paulo; PubliFolha; 2015

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CAVALHEIRO, Pedro Olavo Pedroso. Raghu Rai. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: <https://culturafotografica.com.br/raghu-rai/>. Publicado em: 14 de fev. de 2022. Acessado em: [informar data].

A Terceira Classe

A desigualdade econômica num dos mais luxuosos navios do início do século xx.

A desigualdade econômica num dos mais luxuosos navios do início do século xx.

Feita em 1907 pelo fotógrafo Alfred Stieglitz, a fotografia retrata o convés do Kaiser Wilhelm II, um navio de cruzeiro, feito para ser o mais luxuoso de sua época, que, no momento retratado, zarpava dos Estado Unidos rumo à Europa.  Na foto, podemos ver o deck superior, destinado aos passageiros de primeira classe, pessoas mais abastadas, e o deck inferior, destinado aos passageiros da terceira classe.

Na foto, podemos ver o deck de um navio. Ele é dividido em dois andares diferentes os quais estão abarrotados de pessoas. Uma escada forma uma linha horizontal no meio da fotografia dividindo os dois andares do navio
Alfred Stieglitz

É difícil olhar para a fotografia e não lembrar do filme Titanic, um clássico do cinema, dirigido por James Cameron, que conta a história do amor de um casal que embarca no navio e é separado pela divisão das classes que lá ocorre. Coincidentemente, o Titanic, foi construído alguns anos depois desta foto, justamente para superar o Kaiser Wilhelm II nas questões de velocidade e luxo. 

Assim como o longa, a foto escancara a desigualdade social da época de uma maneira bem clara. No centro da imagem, a ponte traça  uma linha imaginária entre os dois grupos de pessoas. Na parte superior, percebe-se que os indivíduos ali presentes são da classe mais abastada, tanto pelo fato de estarem em um patamar superior aos de baixo, como pelo fato de um dos homens estar usando um chapéu Paris de palha, símbolo da elite francesa do final do século XIX e início do século XX.  Abaixo deles, e do outro lado da linha imaginária, podemos ver a terceira classe sendo representada por mulheres e crianças.   

É interessante pensar como a fotografia mostra não somente como as pessoas eram segregadas  baseadas em suas situações econômicas, mas também sobre como os equipamentos fotográficos estavam longe de ser acessíveis. O ângulo a partir do qual a foto foi feita coloca o fotógrafo no mesmo patamar que a alta classe, a câmera olha para os mais pobres assim como os ricos: de cima para baixo. 

Isso me faz  questionar as afirmações sobre as fotografias terem  democratizado as imagens. Com o advento da reprodução técnica, muitos  passaram a  ter acesso a imagens que retratavam lugares, pessoas e obras de arte que eles nunca veriam sem a fotografia. Entretanto, a democracia é uma via de mão dupla, já que todos devem ouvir e serem ouvidos em um regime democrático. Na fotografia, devido aos equipamentos caros e de difícil acesso, era raro que pessoas das classes mais baixas pudessem fotografar. Sendo assim, milhares de pessoas de classes, etnias, religiões e nacionalidades foram retratadas apenas por um olhar eurocêntrico, vindo de homens brancos e ricos.

É inegável que Stieglitz foi bem intencionado ao produzir essa fotografia, mas também é perceptível que o fotógrafo, talvez devido às amarras sociais, não optou por fotografar as pessoas da baixa classe de um ângulo normal. Mesmo que essa foto tenha sido feita a mais de 100 anos atrás, essa atitude de muitos fotógrafos de não  retratar minorias e pessoas pobres de um ângulo que não o da miséria e sofrimento, não exaltando essas pessoas, persiste até hoje.

O problema atual não é necessariamente a falta de acesso aos equipamentos fotográficos, já que hoje contamos com  smartphones munidos de câmeras com preços relativamente acessíveis. Contudo, mais uma vez, a  visão produzida por pessoas que não pertencem às elites econômicas se encontra ofuscada, desta vez, por padrões técnicos e estéticos. Esses são os principais norteadores dos algoritmos das redes sociais, que têm a capacidade de identificar várias características de fotografias indo desde o equipamento usado até a cor da pele das pessoas da foto. Com isso, eles priorizam imagens feitas com smartphones mais caros e que retratam pessoas brancas.

Esta fotografia me entristece, não só pelas condições precárias em que alguns se encontram enquanto outros desfrutam do luxo , mas pela terrível continuidade dos fatores presentes nela. Um século depois e a sociedade continua ridiculamente desigual, um século depois e as pessoas que controlam os meios midiáticos continuam o projeto de abafar a voz dos oprimidos.

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  • ANG, Tom; Fotografia: O Guia Visual Definitivo do Século XIX à Era Digital; São Paulo; PubliFolha; 2015.

Alfred Stieglitz

Fotógrafo do movimento pictorialista e militante da ideia de fotografia como arte. 

O fotógrafo Alfred Stieglitz nasceu nos Estados Unidos em 1864. Foi uma figura que colaborou muito para a disseminação da ideia de que a fotografia também pode ser uma forma de arte, já que em seus primórdios ela era vista mais como um truque científico ou como uma ferramenta auxiliar do que como uma forma de expressão artística.
Em primeiro plano, podemos ver um homem de costas para a câmera, ele usa um sobretudo e um chapéu. Na frente dele existem quatro cavalos atrelados a um bonde. Ao fundo, podemos ver a entrada de um imponente prédio.
Alfred Stieglitz

Ele foi estudante de engenharia  mecânica, mas quando participou de uma aula de química com o fotógrafo e químico Hermann Wilhelm Vogel, Stieglitz se interessou pelos processos de revelação de filmes fotográficos e ao estudar o assunto acabou apaixonado pela fotografia.
Ele se associou ao Camera Club of New York, onde foi editor do jornal interno do clube. Por boa parte de sua carreira, ele sempre foi muito perfeccionista com suas fotografias em relação aos aspectos técnicos, buscando fotos extremamente nítidas. Porém ao conhecer o trabalho de fotógrafos adeptos ao pictorialismo, ele mudou os rumos de sua arte e passou a fazer fotografia buscando imitar a estética das pinturas, se tornando um dos primeiros fotógrafos a ter seus trabalhos publicados em museus dedicados às artes plásticas. 
A foto é em preto e branco e nela podemos ver apenas um conjunto de estreitas nuvens dispostas uma do lado da outra
Alfred Stieglitz

Na foto, podemos ver o deck de um navio. Ele é dividido em dois andares diferentes os quais estão abarrotados de pessoas. Uma escada forma uma linha horizontal no meio da fotografia dividindo os dois andares do navio
Alfred Stieglitz

A foto é em preto e branco e nele podemos ver uma rua coberta de neve. Mas ao fundo é possível ver uma carruagem puxada por dois calos parece estar se afastando do fotografo deixando marcas no chão
Alfred Stieglitz

A foto é preto e branco e nela podemos ver um conjunto de nuvens que parecem estar formando figuras abstratas no céu
Alfred Stieglitz

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Para Adrian Rodriguez, Com Amor

A história do assalto responsável por ajudar na criação de todo um ensaio fotográfico

A história do assalto responsável por ajudar na criação de todo um ensaio fotográfico

Na primavera de 2010, a fotógrafa Melanie Willhide teve sua casa invadida por um assaltante. Ele levou vários objetos, incluindo o computador e o HD externo nos quais Willhide tinha salvo centenas de fotos de um trabalho que ela havia feito sobre festas noturnas.

Descrição: Na foto se vê duas mulheres lado a lado. Elas estão usando penteados vintages e batons escuros. De seus ombros para baixo, a fotografia foi corrompida e podemos ver apenas listras.
Malanie Willhide

Porém, algumas semanas depois, a polícia de Pasadena recuperou seu computador. Infelizmente ou felizmente, o assaltante formatou a memória do computador, apagando todas as fotos. Melanie decidiu utilizar programas de recuperação de dados e conseguiu várias de suas fotografias de volta. Porém, muitas delas foram corrompidas, causando inúmeras distorções nas imagens.

A fotógrafa, que já gostava muito de utilizar programas de manipulação de imagens no seu trabalho, adorou o resultado.  Segundo ela, as fotos surrealistas, que surgiram com a corrupção dos dados, funcionavam como uma amostra visual da crescente dependência do ser humano com os computadores.  Ao publicar as fotografias, ela decide então dedicá-las a Adrian Rodriguez, o assaltante que tornou tudo aquilo possível.

Descrição: A foto foi muito corrompida e, na maior parte, é possível ver apenas formas geométricas de diferentes cores. Com um pouco de atenção, pode-se identificar pedaços separados de um homem que parece exibir seus músculos para a câmera.
Malanie Willhide
Descrição: Na foto, podemos ver uma mulher da cintura para cima. Ela está nua e com as mãos atrás da cabeça, jogando seus cabelos enrolados para cima. A foto foi corrompida e está coberta por listras pretas.
Malanie Willhide
Descrição: Na foto, podemos ver um homem completamente nu, que se inclina para frente e coloca a mão em sua panturrilha. A imagem  foi corrompida e é possível ver várias partes da fotografia se repetindo por todos os cantos.
Melanie Willhide
Descrição: A foto é espelhada no centro. Nela, um homem está parado com as mão na cintura  veste apenas um calção, enquanto alguém acerta seu rosto com o que parece ser uma torta.
Melanie Willhide

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CAVALHEIRO, Pedro Olavo Pedroso. Para Adrian Rodriguez, Com Amor. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: <https://culturafotografica.com.br/shomei-tomatsu-e-a-globalizacao/>. Publicado em: 06 de dez. de 2021. Acessado em: [informar data].

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O garoto judeu de Varsóvia

A foto que se tornou o símbolo da violência praticada contra crianças na Segunda Guerra Mundial.

A foto que se tornou o símbolo da violência praticada contra crianças na Segunda Guerra Mundial.

O fotógrafo responsável pela fotografia é desconhecido, mas sabe-se que ela foi feita no ano de 1943 e retrata uma multidão de pessoas com as mãos para o alto, em destaque há um menino assustado, logo atrás dele há soldados nazistas armados. O local da foto é Varsóvia na Polônia, durante um levante de judeus, como última tentativa de expulsar as tropas alemãs da cidade.

Autor ou Autora Desconhecido(a)

A foto foi publicada no The New York Times em 1945, porém ficou famosa apenas nos anos 70, quando saiu na capa da edição inglesa do livro “A estrela amarela: a perseguição aos judeus na Europa” de Gerhard Schoenberner.  Depois disso, ela apareceu em inúmeros lugares e por causa disso, se tornou um símbolo da violência praticada contra crianças durante a Segunda Guerra Mundial, sendo colocada no ranking das 100 fotos mais influentes da revista Time.

Há muita controvérsia em relação ao futuro do garoto. Muitos dizem que ele foi morto um pouco depois da foto. Já vários historiadores acreditam que, a julgar pela aparência e pelos uniformes dos soldados, eles estavam ali apenas para transportar os prisioneiros, indicando a possibilidade de que ninguém, na fotografia, foi executado naquele momento. Também existem várias pessoas que dizem ter conhecido ou mesmo assumem ser o garoto da foto.

A única pessoa propriamente identificada na foto foi o homem que segura a arma. Seu nome é Josef Blösche, um oficial de alta patente da SS. Ele, que posa para câmera com uma expressão de orgulho e grandeza, foi julgado no tribunal de Nuremberg, onde foi sentenciado à morte por crimes contra a humanidade. Ironicamente, a fotografia, para qual ele posou com altivez, foi utilizada como prova cabal para sua condenação.

Da mesma forma que não é possível ter certeza da identidade do garoto, também não é possível apontar a do fotógrafo(a). Mesmo não sabendo quem realmente foi responsável por tomar a foto, é curioso pensar em como a presença da câmera impactou todos ali.

Nessa situação, a câmera não se diferenciava de um instrumento bélico, já que o fotógrafo dispara o obturador da mesma forma que os soldados disparavam suas armas em direção às pessoas durante a ocupação de Varsóvia. O efeito da câmera,  sobre a moral e esperança do povo oprimido retratado na foto, também não difere demasiadamente dos efeitos provocados pelas submetralhadoras. As fotografias feitas durante a ocupação foram utilizadas nos relatórios estratégicos e também para propagandas anti-semitas, sendo que ambos contribuíram muito para o extermínio do povo judeu.

As câmeras fotográficas são amplamente relacionadas aos instrumentos bélicos, desde a maneira como muitos fotógrafos se relacionam com seus equipamentos até com as pessoas fotografadas. Essas relações facilmente poderiam ser comparadas a um caçador e sua presa, até mesmo através de nomenclaturas como “disparo” ou “metralhada”

Na foto em questão, podemos ver um bom exemplo do fotógrafo como caçador e as pessoas fotografadas como presas. Sua posição demonstra que ele está ao lado dos soldados e não dos judeus. Na esquerda da foto, uma criança ergue as mãos ao alto, olhando diretamente para a lente. Seus olhos transparecem uma mistura de curiosidade e medo, como se ela não soubesse diferenciar se aquilo era apenas um objeto inofensivo ou uma arma de fogo.

#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.

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CAVALHEIRO, Pedro Olavo Pedroso. O garoto judeu de Varsóvia. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: <https://culturafotografica.com.br/o-garoto-judeu-de-varsovia/>. Publicado em: 03 de novembro de 2021. Acessado em: [informar data].

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