O garoto judeu de Varsóvia

A foto que se tornou o símbolo da violência praticada contra crianças na Segunda Guerra Mundial.

A foto que se tornou o símbolo da violência praticada contra crianças na Segunda Guerra Mundial.

O fotógrafo responsável pela fotografia é desconhecido, mas sabe-se que ela foi feita no ano de 1943 e retrata uma multidão de pessoas com as mãos para o alto, em destaque há um menino assustado, logo atrás dele há soldados nazistas armados. O local da foto é Varsóvia na Polônia, durante um levante de judeus, como última tentativa de expulsar as tropas alemãs da cidade.

Autor ou Autora Desconhecido(a)

A foto foi publicada no The New York Times em 1945, porém ficou famosa apenas nos anos 70, quando saiu na capa da edição inglesa do livro “A estrela amarela: a perseguição aos judeus na Europa” de Gerhard Schoenberner.  Depois disso, ela apareceu em inúmeros lugares e por causa disso, se tornou um símbolo da violência praticada contra crianças durante a Segunda Guerra Mundial, sendo colocada no ranking das 100 fotos mais influentes da revista Time.

Há muita controvérsia em relação ao futuro do garoto. Muitos dizem que ele foi morto um pouco depois da foto. Já vários historiadores acreditam que, a julgar pela aparência e pelos uniformes dos soldados, eles estavam ali apenas para transportar os prisioneiros, indicando a possibilidade de que ninguém, na fotografia, foi executado naquele momento. Também existem várias pessoas que dizem ter conhecido ou mesmo assumem ser o garoto da foto.

A única pessoa propriamente identificada na foto foi o homem que segura a arma. Seu nome é Josef Blösche, um oficial de alta patente da SS. Ele, que posa para câmera com uma expressão de orgulho e grandeza, foi julgado no tribunal de Nuremberg, onde foi sentenciado à morte por crimes contra a humanidade. Ironicamente, a fotografia, para qual ele posou com altivez, foi utilizada como prova cabal para sua condenação.

Da mesma forma que não é possível ter certeza da identidade do garoto, também não é possível apontar a do fotógrafo(a). Mesmo não sabendo quem realmente foi responsável por tomar a foto, é curioso pensar em como a presença da câmera impactou todos ali.

Nessa situação, a câmera não se diferenciava de um instrumento bélico, já que o fotógrafo dispara o obturador da mesma forma que os soldados disparavam suas armas em direção às pessoas durante a ocupação de Varsóvia. O efeito da câmera,  sobre a moral e esperança do povo oprimido retratado na foto, também não difere demasiadamente dos efeitos provocados pelas submetralhadoras. As fotografias feitas durante a ocupação foram utilizadas nos relatórios estratégicos e também para propagandas anti-semitas, sendo que ambos contribuíram muito para o extermínio do povo judeu.

As câmeras fotográficas são amplamente relacionadas aos instrumentos bélicos, desde a maneira como muitos fotógrafos se relacionam com seus equipamentos até com as pessoas fotografadas. Essas relações facilmente poderiam ser comparadas a um caçador e sua presa, até mesmo através de nomenclaturas como “disparo” ou “metralhada”

Na foto em questão, podemos ver um bom exemplo do fotógrafo como caçador e as pessoas fotografadas como presas. Sua posição demonstra que ele está ao lado dos soldados e não dos judeus. Na esquerda da foto, uma criança ergue as mãos ao alto, olhando diretamente para a lente. Seus olhos transparecem uma mistura de curiosidade e medo, como se ela não soubesse diferenciar se aquilo era apenas um objeto inofensivo ou uma arma de fogo.

#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.

Links, Referências e Créditos

Como citar esta postagem

CAVALHEIRO, Pedro Olavo Pedroso. O garoto judeu de Varsóvia. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: <https://culturafotografica.com.br/o-garoto-judeu-de-varsovia/>. Publicado em: 03 de novembro de 2021. Acessado em: [informar data].

A autoimolação de Thich Quang Duc

A fotografia do monge em chamas ainda causa choque 58 anos depois e se tornou símbolo de revolução.

Algumas imagens se tornam permanentes no imaginário do público, seja por sua alta difusão, importância cultural ou por se tornarem um marco que é constantemente relembrado. A obra “A autoimolação do monge” é uma das cenas mais chocantes e icônicas da história da fotografia que não só aterrorizou diversas pessoas, como também ajudou a trazer discussões que antes não recebiam a devida atenção. 
Malcolm Wilde Browne

A serenidade do monge e a fúria do fogo são dois estados conflitantes que se misturam em um emaranhado de significados. Mesmo com a metade de seu corpo  sendo tomada pelas chamas, Thich Quang Duc continua imóvel, sentado em uma posição de meditação. É difícil determinar o que exatamente estava pensando enquanto tudo ocorria, ou como conseguiu suportar a dor de queimar até a morte, mas não somente a fotografia, diversas testemunhas oculares citam não terem visto o monge se mover em momento algum, apenas quando seu corpo caiu morto no chão.
Ao observar mais ao fundo é possível enxergar diversos outros monges que observam, sem intervenções, atentamente tudo o que está ocorrendo.  O galão branco no lado esquerdo inferior da imagem serve como uma explicação de qual é a origem do fogo, além de deixar claro que o ato foi proposital. E assim, com muita naturalidade, um dos maiores medos humanos, morrer queimado, é representado como uma escolha.  
O fotógrafo Malcolm Wilde Browne, responsável pelo registo,  explica que começou a fotografar imediatamente como uma forma de conseguir lidar com aquela cena pavorosa. Ver uma pessoa morrer aos poucos é uma cena difícil de digerir. Browne parece encontrar atrás da câmera um local de refúgio.  Apesar do choque, o registro foi bem calculado, uma vez que a manifestação havia sido divulgada anteriormente pelos monges. o feito garantiu o Prêmio Pulitzer de Serviço Público e de Foto do Ano pela World Press Photo para o fotógrafo. 
Tudo começou no dia 11 de junho de 1963. O Vietnã do Sul passava por uma intensa tensão religiosa em que o regime de Ngo Dinh Diem perseguia monges budistas e havia criado uma política religiosa que excluía o budismo. Durante um protesto contra o governo na cidade de Saigon, o monge Mahayan Thich Quang Duc, que tinha 66 anos na época, resolveu cometer a autoimolação como forma de protesto. A Guerra do Vietnã que já durava 5 anos, fez com que a invasão de culturas ocidentais, principalmente do domínio americano, fizessem com que a influência do catolicismo se fortalecesse ainda mais, facilitando com que Diem tomasse medidas discriminatórias contra os budistas. Porém, mesmo entendendo o contexto por trás da fotografia, ainda é difícil de mensurar o que leva um homem pacífico a atear fogo sobre o próprio corpo. 
A autoimolação é o ato de atear fogo sobre o próprio corpo, normalmente como protesto ou martírio (Dicionário Informal). Parte do choque e do horror despertados em diversas pessoas que entraram em contato com a fotografia, vinham de uma disparidade entre culturas. A autoimolação é na verdade um tipo de protesto comumente usado no hinduísmo e xintoísmo, em uma espécie de ritual que poderia representar protesto, devoção ou renúncia. O sati, por exemplo, era um antigo costume de comunidades hindus em que uma esposa viúva cometia um ritual de se jogar ao fogo junto de seu marido morto, até que foi proibido pelas leis do Estado Indiano. Além disso, apesar do suicídio ser um desvio dos preceitos do budismo, o ato também é utilizado como protesto por muitos monges e praticantes, sendo uma prática controversa entre autoridades budistas que debatem sobre sua relação com as tradições religiosas. 
Mohamed Bouazizi, cuja autoimolação é considerada por muitos como o estopim da Primavera Árabe, é um exemplo de como a prática também é muito forte no Oriente Médio como um todo, além de revelar como o ato pode gerar uma movimentação social inexplicável. A onda de protestos que seguem essa mesma linha acontecem até os dias de hoje, muitos inspirados em Bouazizi. 
Para entender a autoimolação  em casos como esse da imagem, é importante ressignificá-los além da categorização de “suicídio”. Para muitos admiradores de Thich Quang Duc e Bouazizi, morrer em prol da religião e da liberdade de um povo é um ato de revolução. Mais do que desespero, é um ato de justiça, sacrifício e devoção. 
São nesses momentos que percebemos a importância do fotojornalismo. Caso Browne não tivesse registrado o momento, o resto do mundo não viraria os seus olhos para a Guerra do Vietnã e o governo de Duc não anunciaria reformas a fim de tentar negociar com a população. O monge foi e ainda é visto como um símbolo de bravura e resistência, fazendo com que muitos monges da época chegassem a cometer a autoimolação após a divulgação da imagem.
A fotografia foi mais tarde utilizada como capa do álbum de estréia da banda Rage Against The Machine, demonstrando o seu impacto até mesmo na cultura pop. As músicas que carregam comentários políticos parecem levar a imagem do monge como a de um símbolo de revolução, assim como os budistas. Isto mostra que o poder da fotografia de Browne fez com que Thich Quang Duc virasse um signo de luta que qualquer pessoa possa se identificar, mesmo que sua realidade seja bem diferente da de um vietnamita daquela época.  
#leitura é uma coluna de caráter reflexivo. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, histórica, política e social. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor as postagens da coluna? É só seguir este link.

Links, Créditos e Referências:

O beijo na Time Square

A história por trás da mais famosa foto de Alfred Eisenstaedt

No dia quatorze de agosto de 1945, o fotógrafo Alfred Eisenstaedt registrou em Nova York, a polêmica fotografia intitulada “O Beijo na Times Square”. A imagem retrata a cena de um beijo entre um marinheiro e uma enfermeira na Times Square, após o término da segunda guerra mundial.

Alfred Eisenstaedt

O fotógrafo utilizou uma grande profundidade de campo, provavelmente para captar as reações das pessoas ao redor do casal. Ele conta, em seu livro, que um dos principais motivos para ter tirado esta foto, foi como achou interessante o contraste entre o vestido branco da enfermeira e a roupa escura do marinheiro.

Conforme a fama da imagem crescia, a identidade do suposto casal apaixonado era questionada, já que as pessoas queriam saber como e onde estavam os sujeitos daquela fotografia. Depois de muitas pesquisas, Alfred Eisenstaedt descobriu que o nome do marinheiro é George Mendonsa, tripulante do navio USS The Sullivans. Já a enfermeira se chama Greta Zimmer Friedman, na época ela trabalhava como assistente de dentista e tinha 21 anos.

 Em entrevistas, Greta conta que nunca tinha dado permissão ao marinheiro para beijá-la. Além disso, a futura esposa de George aparece na foto e seu rosto pode ser visto por cima do ombro direito dele.  A fotografia  “O Beijo na Times Square” já foi considerada extremamente romântica e muitas releituras foram feitas.

 Confesso que já achei que era simplesmente um casal apaixonado posando para o fotógrafo. Entretanto, quando pesquisei a história que estava por trás, houve uma mudança na minha percepção em relação a esta fotografia. Por causa disso, descobri que a captura da imagem aconteceu em meio às comemorações eufóricas, devido ao final da segunda guerra mundial, mas também, a demonstração de afeto que eu achava que tinha sido registrada, na realidade, era um beijo bruto e sem o consentimento de Greta, ato que, ao meu ver, foi extremamente abusivo.

Podemos pensar que esta ação praticada pelo marinheiro, pode ter sido influenciada pela simples presença do fotógrafo. Logo, um agravante para a situação preocupante que ocorre na fotografia, já que George pode ter agarrado Greta por causa da existência de Alfred na cena.

Em relação ao beijo, o que eu percebo é uma circunstância em que George agarra Greta enquanto ela estava passando pela rua. O ato não foi consensual, ou seja, esse tipo de situação não é aceitável, pois trata-se de assédio sexual. Penso que é importante e necessário problematizar para desnaturalizar essa prática que ocorreu devido à objetificação da imagem da mulher e ao machismo institucionalizado. Com isso, saber a história, com o intuito de trazer outros elementos para a fotografia, é extremamente importante para que tenhamos um olhar mais atento.

A objetificação dos corpos femininos é um problema social que está enraizado nas entranhas da nossa sociedade. No dicionário, a objetificação é definida como:  “Processo que atribui ao ser humano a natureza de um objeto material, tratando-o como um objeto ou coisa; coisificação.” Trata-se da anulação da posição de sujeito da mulher, ignorando seus desejos e emoções. É entendê-la como um objeto passivo de receber quaisquer ações de terceiros.

Em suma, a fotografia é mais um exemplo dos males que o machismo causa no cotidiano e na vida das mulheres. Greta estava em um local público, mas isso não significa que seu corpo seja público. Com isso, ressalto, mais uma vez, a importância da história, do diálogo e da luta para desnaturalizar este tipo de ação.

#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.

Links, Referências e Créditos

Como citar essa postagem

HELENA, Beatriz. O beijo na Times Square. Cultura Fotográfica. Publicado em: 13 de out. de 2021. Disponível em: https://culturafotografica.com.br/o-beijo-na-time-square/. Acessado em: [informar data].

Os Flagelados da Seca no Ceará

A foto de Juca Martins mostra o abismo econômico que existe entre as classes mais ricas e mais pobres no Brasil

A foto de Juca Martins mostra o abismo econômico que existe entre as classes mais ricas e mais pobres no Brasil

Tirada em 1983, pelo fotojornalista Juca Martins, quando ele foi cobrir os impactos de um dos mais longos períodos de estiagem que atingiu o país, a foto mostra pessoas com vestes simples, à beira de uma estrada. Elas erguem suas mãos em súplica na direção de um Chevrolet Opala, um dos carros mais luxuosos de sua época, o carro apenas entra na contramão para se distanciar e segue seu caminho. 

Juca Martins

Na época retratada, o nordeste do país estava passando por um dos piores períodos de seca de sua história. Ele durou de 1979 a 1985, atingindo seu ápice em 1981. Criações de animais e plantações inteiras morreram, deixando milhares de famílias sem ter o que comer. Diante desta situação, João Figueiredo, presidente do regime ditatorial, declarou que “Só nos resta rezar para chover”.

Além da seca, o país também sofria com índices altíssimos de inflação. Com o intuito de contê-la, os militares criaram um modelo econômico que levou ao que ficou conhecido como “milagre econômico”, período com índices de inflação baixíssimos e com o PIB elevado. Porém, o modelo era mal planejado e por mais que a inflação tivesse caído a desigualdade social disparou e a economia ficou extremamente dependente da exportação de commodities. Em 1979, com a segunda crise do petróleo, a economia despencou, a inflação chegou a 200% e o país se viu afundado em dívidas.

O suposto “milagre econômico”, responsável por enfraquecer sindicatos e privar milhares de trabalhadores de seus direitos, acabou deixando o país em uma situação econômica ainda pior, na qual o 1% mais rico da sociedade detinha 30% de toda a renda do país.

Com essa composição, o fotojornalista traz uma mistura entre o chocante e o sutil. A fotografia com toda certeza tece críticas fortes ao governo da época, juntamente com seus modelos econômicos, mesmo sem fazer menção a ele. Isso era essencial para todos os profissionais de imprensa da época, devido a forte censura feita pelos militares, que, mesmo reduzida na época, ainda poderia ser perigosa para os jornais, mas principalmente para os jornalistas.  Na foto,

Juca Martins capta uma síntese de todos esses 20 anos de história. A direita vemos um Chevrolet Opala, fabricado em 1976, período auge do “milagre econômico”, representando o melhor da industrialização desenfreada, ocorrida com a vinda das montadoras automobilísticas para o Brasil. E a esquerda, separados do Opala por uma linha contínua, uma família faminta e sedenta, que, diferentemente da indústria, não recebeu nenhum auxílio governamental e apenas implora ajuda para uma elite econômica que insiste em ignorá-la.

#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.

Como citar esta postagem

CAVALHEIRO, Pedro Olavo Pedroso. Os Flagelados da Seca no Ceará. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: <https://culturafotografica.com.br/os-flagelados-da-seca-no-ceara/>. Publicado em: 06 de out. de 2021. Acessado em: [informar data].

Uma voz que precisa ser ouvida

A fotografia de Yasuyoshi Chiba é um grito de força e esperança.

Suor escorrendo pela pele, uma postura ereta, o queixo levantado, a mão aberta sobre o peito e uma expressão de bravura. O jovem, personagem central desta fotografia, não parece se intimidar com os olhos de diversas pessoas pousados sobre si, nem mesmo com a luz de cada celular usado para iluminar o seu rosto. O garoto, cujo nome não sabemos, marca sua presença como ninguém. 

Yasuyoshi Chiba/AFP/World Press Photo
Não havia luz no dia 19 de junho de 2019 em Cartum, capital de Sudão. O apagão imposto pelo governo aconteceu poucos dias antes de operações militares que resultaram no assassinato de milhares de manifestantes. Ainda assim, o grupo pró-democracia da imagem acima se reuniu mais uma vez para lutarem por seus direitos e, enquanto o garoto de blusa azul recitava um poema em forma de protesto, o sentimento de esperança parecia não ter desaparecido.  
A fotografia congela esse momento, como se a fala do garoto nunca tivesse cessado. E, todas as vezes que olhamos para ela, paramos tudo para ouvi-la novamente. O próprio nome da obra, “Straight Voice” ou voz direta (tradução livre), mostra a força do jovem da imagem. Mas, como uma fotografia não consegue emitir sons, é impossível saber exatamente o que ele diz e a mensagem é deixada em pequenas pistas. 
A primeira está nas mãos erguidas que se estendem em torno do garoto mostrando que, seja lá o que ele está dizendo com tanta firmeza, é ovacionado em um consenso geral. A outra está nos outros rostos jovens presentes na imagem que o rodeiam com a mesma destreza. É como se essa voz falasse por todos que estão presentes. Ela é a representação de uma geração jovem que está lutando para construir um futuro novo com as próprias mãos. 
A obra de Yasuyoshi Chiba ganhou o prêmio de fotografia do ano pela World Press Photo, um dos prêmios mais importantes do fotojornalismo profissional. Acredito que parte da paixão por essa imagem existe por conta do caráter poético em cada detalhe de sua composição. Começando por seu tom apático, mas ao mesmo tempo vibrante. Enquanto o redor aparenta ser devorado pela completa escuridão, os corpos se destacam em tons quentes, impossíveis de serem ignorados, mostrando que se o apagão foi feito com a intenção de calar essas pessoas, elas fariam o possível para serem ouvidas.
O registro é totalmente preenchido com os manifestantes, sobrando pouco espaço vazio. Esse enquadramento fechado ajuda a fortalecer o pequeno grupo pacífico que ganha uma imagem imbatível de união e força. Todos têm seus corpos direcionados ao menino, levando o nosso olhar mais uma vez para o centro da imagem. E a figura centralizada que exala uma juventude inquieta e que não teme nada, parece gritar que a sua voz deve ser ouvida. 
Ao fundo, as luzes dos celulares iluminam as costas do garoto e atribuem-lhe uma aura épica. Esse esforço em fazer com que o jovem seja visto e ouvido demonstra uma atitude admirável em meio a tanta violência, um sinal de que a empatia e comunhão não se perdeu. E, assim, se movem em uma só direção, com um poder que apenas um registro tão delicado como este pôde capturar. 
#leitura é uma coluna de caráter reflexivo. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, histórica, política e social. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor as postagens da coluna? É só seguir este link.

Links, Referências e Créditos: 

Espaços e biografias

As fotografias de “Noturno” narram sentimentos de pessoas que convivem com a guerra no Oriente Médio.

Qual sentimento o espaço onde você está agora, te provoca? Na fotografia abaixo, a mulher atravessada por um pequeno feixe de luz, com sua mão esquerda com o seu corpo apoiado na parede, seu lado direito estático e seus olhos fechados, nos sugere algum sentimento que provém da presença no espaço onde ela está.


Foto: Gianfranco Rosi/2020.


O feixe de luz  indica uma pequena abertura no alto do cômodo. As paredes desgastadas e sujas sugerem um ambiente que não passa por reformas há algum tempo. Mas o interessante é que essas e outras circunstâncias remetem e causam sentimentos nessa mulher, que parece experimentá-los à medida que tateia esse espaço.


Desde que li “Biografia, corpo e espaço” de Delory Momberger, a ideia de que os espaços constituem nossa biografia não sai da minha cabeça. As fotografias que escolhi para este trabalho provocam essa  ideia, pois a casa onde moramos ou os caminhos que percorremos, por exemplo, constituem a nossa  memória, a nossa história e os nossos sentimentos.


Foto: Gianfranco Rosi/2020.


Ou seja, o espaço não é apenas um cenário ou uma ilustração presente nas fotografias ou no nosso dia a dia. Ele também reflete sobre nós a dimensão da nossa experiência geográfica ou sentimental, condiciona nossas práticas e nossas representações do mundo, pois é constituído culturalmente e socialmente.

Mas não podemos deixar de lado que nós interferimos no espaço, assim como ele interfere em nós, e  essa troca é constante, uma vez que o nosso corpo é um espaço dentro do espaço. Assim nasce parte do processo da nossa biografia. 

Vale ressaltar que essas fotografias são do documentário “Noturno”, dirigido por Gianfranco Rosi. 


 #leitura é uma coluna de caráter reflexivo. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, histórica, política e social. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor as postagens da coluna? É só seguir este link.



Links, Referências e Créditos


https://piaui.folha.uol.com.br/notturno-um-feito-cinematografico-admiravel/


DELORY-MOMBERGER, C. Biografia, corpo e espaço. In: Biografia e educação: figuras do indivíduo-projeto. Natal: EDUFRN, São Paulo: PAULUS. (2008)


Cerimônia fúnebre de Kosovo

A controversa fotografia de George Mérillon, vencedora do World Press Photo em 1991.

Em 1990, George Mérillon registrou, em Kosovo, a fotografia “Cerimônia fúnebre de Kosovo” que posteriormente foi intitulada como “Pietá de Kosovo”. A imagem retrata a dor de uma mãe, rodeada por mulheres familiares, ao perder o filho, vítima de conflitos que ocorreram no território.

George Mérillon

A fotografia “Cerimônia fúnebre de Kosovo” mostra o corpo de Elshani, na época com vinte e sete anos, envolto em uma mortalha branca. Ele foi assassinado em um protesto contra a perda de autonomia da região. Nela também vemos sua mãe, Sabrié, dando um doloroso grito por causa do assassinato do filho.

A meu ver, a imagem da mãe, pode ser comparada com a da Pietá, escultura de Maria abraçada ao corpo morto de Jesus Cristo, após seu descendimento da cruz. A expressão do rosto da virgem é estranhamente sereno e idealizado. Já o semblante de Sabrié não mostra nenhum resquício de serenidade, pois é possível perceber a dor e o sofrimento diante do trauma da morte de seu filho. Seu grito atravessa a fotografia, é como se pudéssemos ouvir sua expressão angustiante.

Após algumas leituras, sinto um certo incômodo em relação ao embelezamento de uma cena trágica mediante a utilização de técnicas de composição e edição. Além disso, me veio o questionamento do motivo desta fotografia ter ganho o prêmio da World Press Photo Foundation, será que é por causa dela ser considerada esteticamente bela e não pela importância do acontecimento político?

Podemos observar que o fotógrafo captura a imagem no meio de um ritual fúnebre, ato que pode simbolizar um extremo desrespeito às pessoas ali de luto. Além disso, o fotógrafo se utiliza de técnicas de composição e edição para produzir uma imagem que se aproxima esteticamente de pinturas do renascentismo italiano, por exemplo a “Madona Sistina” realizada por Rafael Sanzio. Logo, uma possível hipótese é que o fotógrafo não se preocupe com o sofrimento causado pela perda e, talvez, busque apenas alcançar um valor estético.

#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.

 Links, Referências e Créditos

Como citar essa postagem

HELENA, Beatriz. Cerimônia fúnebre em Kosovo. Cultura Fotográfica. Publicado em: 25 de ago. de 2021. Disponível em: https://culturafotografica.com.br/cerimonia-funebre-de-kosovo/. Acessado em: [informar data].

A força de Ynet Nili

A história por trás da fotografia vencedora do prêmio Pulitzer de 2007 

A história por trás da fotografia vencedora do prêmio Pulitzer de 2007

A fotografia foi feita em 2006 pelo fotógrafo israelense Oded Balilty enquanto ele cobria a desocupação de um acampamento ilegal de palestinos chamado Amona, em Israel. A ordem de desocupar o acampamento veio do governo de Israel, sob a alegação de que sua construção nunca havia sido aprovada. A garota na foto é Ynet Nili, que na época tinha 16 anos e estava tentando desesperadamente salvar a sua casa que ficava a poucos metros de onde a foto foi tirada.

Oded Balilty, Amona, Israel, 2006

Quando a foto foi publicada, ela teve uma gigantesca repercussão. O fotógrafo Oded Balilty se tornou o primeiro israelense a vencer o prêmio Pulitzer, o que não é nada surpreendente considerando a mensagem de força e resistência que a foto passa.  

Essa mensagem de força está muito ligada à forma desbalanceada da composição. Ynet ocupa uma parte muito pequena da foto e está muito à direita da foto, já os soldados, ocupam uma grande área que sai desde o lado esquerdo e vai até o direito. Isso ajuda a ressaltar a desvantagem na qual a garota estava.

Porém, apesar de toda essa diferença de força, temos a impressão de que ela está segurando todo o pelotão. Isso se deve a maneira com que os corpos estão dispostos. O de Ynet encontrava-se inclinado contra os soldados, já o corpo do soldado que está mais à frente, parece estar inclinado para trás. Com isso a garota parece estar mais firme, enquanto os soldados parecem estar caindo.

Contudo, ao ser perguntada sobre o momento dessa foto, Ynet diz que foi derrubada e espancada pelos soldados, que agiram de maneira violenta com todos os moradores do acampamento. Poderíamos, então, concluir que a foto é inverídica, já que passa uma mensagem de resistência intransponível, mesmo que a garota não tenha segurado os soldados ?

A fotografia vencedora do prêmio poderia, por exemplo, ter sido a do espancamento de Ynet logo depois desse momento, mas uma foto assim faria jus à coragem da menina de correr em direção aos escudos? Por mais que ela mostre o que realmente ocorreu com Ynet, ela teria a mesma força, simbolizaria também a resistência dos oprimidos?

Essa é uma foto que segue muito bem o conceito de momento decisivo criado pelo fotógrafo Henri Cartier Bresson. Mesmo que isso não seja mostrado, não é difícil perceber que a garota não conseguiu segurar a investida militar por muito tempo, mas também mostra a sua coragem de sair de sua casa e correr em direção a soldados armados com o único intuito de proteger seu lar e sua família. No fim, a foto, mesmo mostrando apenas alguns milésimos de segundo, conta toda uma narrativa com começo, meio e fim.

#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.

Links, Referências e Créditos

Como citar esta postagem

CAVALHEIRO, Pedro Olavo Pedroso. Shomei Tomatsu e a Globalização. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: <https://culturafotografica.com.br/shomei-tomatsu-e-a-globalizacao/>. Publicado em: 25 de maio de 2022. Acessado em: [informar data].

A poesia em “Malandragem”

.Registro emblemático do fotógrafo German Lorca gera reflexões sobre os diferentes modos de se fotografar

Uma rua escura e molhada de São Paulo, dois homens e um enquadramento singular. Esses são os principais personagens da famosa fotografia Malandragem, feita por German Lorca em 1949. Tais elementos ao serem unidos com o modo único de fotografar do paulista revelam um registro com um lirismo intrínseco, uma maneira diferente de se fazer poesia. 
German Lorca
Como já foi citado na galeria dedicada ao fotógrafo German Lorca, que você também pode acessar aqui no Cultura Fotográfica, São Paulo sempre foi a sua maior inspiração. Ele acompanhou a modernização da capital e outras situações cotidianas de uma forma bem singular. A fotografia naquela época começou a ser usada de uma maneira cada vez menos tradicional. Lorca e outros fotógrafos do fotocineclube Bandeirantes começaram a usar técnicas diferentes para expressar os temas da cidade e do homem moderno, usando a fotografia como um meio de criar ficções.
A fotografia “Malandragem”, destacada acima, carrega vários elementos que denunciam seu lirismo. O primeiro é demonstrado pelo seu singular enquadramento. Os dois personagens da imagem, que aparentam ser homens vestidos com trajes sociais, estão parados um de frente para o outro com poses parecidas, porém invertidas, em uma espécie de espelhamento. O enquadramento, no entanto, não parece se preocupar em registrá-los por completo e se detém em apenas mostrar os seus pés. 
Por ser espelhado pelos dois personagens, o posicionamento dos pés, que em uma primeira olhada é o elemento mais forte para entender o que está acontecendo na cena,  sugere uma espécie de tramoia ou talvez um complô. Esse enquadramento pouco detalhista cria uma imediata sensação que elucida muito bem o próprio título da imagem “Malandragem”, como se o registro tivesse sido tirado às escondidas e os segredos dos dois personagens estivessem bem guardados. 
Um feixe de luz, no entanto, vai de encontro com uma poça d’água que está na rua e reflete a parte de cima dos personagens em uma silhueta um tanto turva. Esse elemento, que sem dúvida alguma foi proposital, instiga uma certa curiosidade, já que temos um vislumbre do que estava sendo tramado, porém sem ter uma resposta exata deixando o caminho livre para a imaginação criar narrativas e ficções.
Essa habilidade de German Lorca de não revelar tanta informação de imediato, faz com que cada detalhe conte o que está acontecendo em cena. A intenção aqui então não é meramente ilustrativa, é de criar um cenário que comunica com a sua época. “Malandragem” em sua essência fala sobre uma São Paulo escondida nas esquinas, que só pode ser vista à noite. É uma fotografia que te faz adentrar em um imaginário literário de uma capital cheia de suspense e mistérios prontos para serem descobertos. 
Apesar de conseguir exprimir uma naturalidade, de fato o registro em questão é considerado um pseudo flagrante como várias outras imagens do paulista. Em um bar no cruzamento das ruas Bresser e Almirante Barroso, Lorca posicionou os dois homens e montou a cena da imagem. Porém, esse fato não diminui ou exclui a beleza da obra. O preto e branco, a poça d’água, o espelhamento dos personagens. Cada elemento da imagem parece ter sido tirado de um filme de investigação, ou da releitura de um livro. Contrapondo a fotografia tradicional da época que focava mais no factual e no registro flagrante, Lorca usa de sua arte como uma forma de fazer poesia. 

Links, Referências e Créditos

Sair da versão mobile
%%footer%%