Proximidades: pelo olhar Alice Martins

Entre Síria e Turquia, Alice Martins fotografou cenas cotidianas das pessoas atingidas pelos conflitos armados.
 
A mãe com a criança no colo me remeteu a algumas das representações ocidentais de mães com filhos no colo, como a Madonna e a Pietá. Meu olhar direcionado pelo arquétipo ocidental de interpretação de imagem é o  que também me faz escolher essas fotografias para aqui refleti-las. Abaixo, observamos uma mulher com um bebê no colo em uma sala que não parece ser habitada.
 

 

Mulher tenta acalmar uma criança em uma escola em Hasaka,/Síria, A. Martins, 2019.  


Os tons de marrom e branco no ambiente, assim como a paisagem deturpada pela janela, me proporcionam as sensações de frio e abandono, aliás o lugar me soa abandonado. Então o colo da mulher se torna muito acolhedor e amável, quase não notamos uma terceira pessoa ali: Alice. Porém a legenda da foto nos diz o contrário do que penso. Como interpretaríamos essa imagem sem legenda?
 
Mesmo que o trabalho da Alice tenha sido desenvolvido no Oriente Médio, códigos e semelhanças sociais nos fazem aproximar das suas fotografias, de acordo com o que apresentam. Considero persistente entender que o nosso olhar é direcionado pela nossa cultura, então a partir de onde pensar essa proximidade de sentidos e sentimentos?

 

Cena de praia em Casablanca/ Marrocos. A Martins, 2020.


O que me chama atenção nessa fotografia é que um lugar que habita o meu imaginário catastroficamente, também oferece lazer, risos e brincadeiras. Nos é comum neste momento as lembranças de idas à praia. Essa serenidade em Marrocos vai além das notícias de telejornais e rede sociais, por exemplo, ela nos remete a descontração do cotidiano.
 
Da sala à praia, o que nos aproxima dessas fotografias são as relações de afetos demonstradas pelas pessoas nesse momento capturado. Ambos os ambientes, tornam-se à extensão do lar, seja pelo acolhimento, pela descontração e de certo pelo afeto demonstrado, etc. 
 
Quando escrevo sobre outros lugares que não o Brasil, eu sempre penso no que me levou até lá. Acredito que o “ouvi falar” e a vontade de conhecer o lugar, sustentem essa viajem que acontece por meio das leituras. Que bom descobrir que o comum é extraordinário quado o caos circunscreve as notícias. 
 
 #leitura é uma coluna de caráter reflexivo. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, histórica, política, social. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor as postagens de coluna? É só seguir este link.
 

Links, Referências e Créditos

O exército patrulhando as ruas

A fotografia de Koen Wessing pode causar diversas sensações com o contraste encontrado em seu interior.

Em 1979, Koen Wessing registrou, na Nicarágua, a contrastante fotografia intitulada “O exército patrulhando as ruas”. A imagem de três soldados em patrulha e o caminhar de duas freiras no período da Revolução Sandinista é de uma dualidade notória.

Koen Wessing

Koen Wessing nasceu em Amsterdã no ano de 1942. Apaixonado por fotografia e com uma alma viajante, visitou vários lugares do mundo e, por causa disso, registrou muitos acontecimentos em diversos países. Em 1978, Wessing viajou até a Nicarágua para fotografar a família Somoza, cujo regime ditatorial começava a ruir, por causa da Revolução Sandinista que dava seus primeiros passos na época. Um ano depois, voltou ao país para documentar a mudança ocorrida em virtude dos conflitos civis.

A fotografia “o exército patrulhando as ruas” mostra um cenário em ruínas. As casas parecem desabitadas e a superfície da rua está destruída, consequência dos combates e dos bombardeamentos que aconteceram na tentativa de conter a Revolução. O sistema ditatorial de Somoza foi repulsivo e violento. Por causa desta ditadura, a realidade social da Nicarágua era crítica, já que a maioria da população vivia em uma situação de extrema miséria. É um cenário doloroso, mas que resiste à brutalidade que está presente na fotografia.

Além do local danificado, a fotografia também carrega uma dualidade evidente, pois é mostrado duas freiras passando por três soldados em patrulha. Por fazerem parte da Guarda Nacional de Anastasio Somoza, a imagem dos militares, a meu ver, carrega uma violência exacerbada causada por um governo repressivo.

Em contraste com os soldados, a imagética da freira, na minha perspectiva, remete à tranquilidade e paz. Por causa disto, vê-las em um cenário bélico me causou estranheza na primeira vez que observei a fotografia. Entretanto, percebi um certo cansaço e uma certa preocupação com um passado doloroso, um presente duro e um futuro incerto no olhar de uma das freiras. Com isso, penso que elas podem ser um símbolo de resistência.

#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.

Lins, Referências e Créditos

  • ROLAND Barthes. A câmara clara. 7 ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira. 2018.

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HELENA, Beatriz. O exército patrulhando as ruas. Cultura Fotográfica. Publicado em: 7 de jul. de 2021. Disponível em: https://culturafotografica.com.br/o-exercito-patrulhando-as-ruas/. Acessado em: [informar data].

Atrás da Estação de Saint-Lazare

Fotografia de Cartier-Bresson é uma síntese do “momento decisivo”.

Fotografia de Cartier-Bresson é uma síntese do “momento decisivo”.

A fotografia “Atrás da Estação de Saint-Lazare” tomada por Henri Cartier-Bresson é considerada uma de suas obras mais importantes. Ela retrata o momento em que um homem, saltando sobre uma poça, tem seus pés a prestes a tocar na água.

Henri Cartier-Bresson, Paris, 1932

Além do homem saltando, a composição da foto mostra vários elementos interessantes. A começar pelo reflexo da água parada, um importante fator para compor o ar misterioso da foto. Um pouco mais atrás, podemos ver o cartaz de um circo e nele o desenho de um dançarino, que parece mimetizar o movimento do homem em uma direção contrária e isso parece complementar o reflexo na água. Além de formas geométricas que trazem a foto um caráter surrealista, como os círculos em primeiro plano e as formas triangulares formadas pelos telhados ao fundo.

Por que essa fotografia é tão cultuada como sendo a síntese do pensamento de Bresson em relação ao momento decisivo? Em “O Momento Decisivo”, ele diz “Tinha, sobretudo, o desejo de captar numa única imagem o essencial de uma cena que emergia” (BRESSON, 1952, p. 147), ou seja, para ele o momento decisivo seria um exato ponto de uma cena, capaz de resumi-la como um todo, momento esse que só poderia ser captado por puro instinto do fotógrafo, quase que como uma premonição.

Na foto, o homem está eternamente preso no meio de seu salto, fadado a estar a milímetros do chão sem nunca tocar a água, porém, quem a olha consegue com clareza “ver” seus pés encontrando a água e a deixando turva. Confesso que, depois de tanto tempo olhando para ela, já consigo até ouvir o som da água respingando por todos os lados. É a isso que Bresson se refere ao dizer “uma cena que emerge”.

Outro ponto importante, cuja existência reforça ainda mais a ideia do momento decisivo, é o fato de a foto ter sido feita através de um buraco em uma cerca, isto sugere que Bresson não utilizou nada além de instinto para captar a cena. Além disso, ao analisar os detalhes das formas e do desenho do dançarino ao fundo, que casam perfeitamente na composição da foto, fica impossível não relacionar diretamente essa fotografia ao seguinte trecho:

Para mim, uma fotografia é o reconhecimento simultâneo, numa fração de segundo, tanto do significado de um fato quanto de uma organização rigorosa das formas, percebidas visualmente, que exprimem esse fato. (BRESSON, 1952, p. 153)

Talvez o único detalhe presente nessa fotografia que a distancie de uma síntese do momento decisivo seja o fato de que Bresson precisou cortá-la, ato raríssimo em todo seu trabalho, já que em muitos textos e entrevistas ele deixa claro seu repúdio por qualquer alteração da fotografia original. Segundo ele, a foto foi feita através de um buraco em uma cerca, que não era aberto o suficiente, por isso boa parte da foto não tinha nenhuma informação.

Não obstante, vemos uma fotografia capaz de resumir toda uma cena em apenas alguns milésimos de segundo, com uma composição tão rigorosa que parece ter sido montada, vemos um universo de possibilidades e conexões, capturado em um pequeno retângulo de 36x24mm.

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CAVALHEIRO, Pedro Olavo Pedroso. Atrás da Estação de Saint-Lazare. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: <https://culturafotografica.com.br/atras-da-estacao-de-saint-lazare/>. Publicado em: 30 de jun. de 2021. Acessado em: [informar data].

A Mãe Migrante

A história por trás da mais famosa foto de Dorothea Lange.

A história por trás da mais famosa foto de Dorothea Lange.

A fotografia Mãe Migrante foi feita em Março de 1936 pela fotojornalista Dorothea Lange enquanto ela cobria a migração de trabalhadores rurais que estavam indo para o leste dos Estados Unidos em busca de emprego. Ela retrata Florence Thompson, que só foi identificada anos após a foto ser publicada.

A Mãe Migrante, Dorothea Lange, Nipomo, California, EUA, 1936

Lange havia sido contratada pela Resettlement Administration (RA), agência criada pelo governo dos Estados Unidos em 1935 para reassentar familias carentes de zonas urbanas e rurais e que posteriormente integraria a Farm Security Administration (FSA), por. A cobertura tinha o objetivo de comover a população e incentivar políticas de amparo para essas famílias. A foto cumpriu bem seu papel, pouco depois de sua publicação, o governo americano enviou ajuda médica e alimentos para os acampamentos dos Pea Peckers, como eram conhecidos esses trabalhadores rurais.

Mesmo que muitas outras fotos tenham sido feitas na campanha, esta foi a que mais se destacou. Provavelmente, devido ao olhar distante da mãe, que nos sugere que ela está perdida em seus pensamentos. Seus três filhos se apoiam sobre seu corpo.  A despeito de sua expressão cansada, temos a impressão de que essa mulher não irá desistir.

Graças a essa mistura de empoderamento e sofrimento, muitos dos americanos passaram a ver nesse rosto uma representação do povo estadunidense, que enfrentava uma das maiores crises econômicas da história do país. Por isso, a fotografia de Lange passou a ser um dos maiores símbolos de sua época.

Em 1975,  Florence Owens Thompson finalmente se identificou como sendo a “Mãe Migrante” da fotografia de Dorothea. Ela entrou em contato com a Associated Press, concedendo uma entrevista sobre o seu lado da história. Segundo ela, a história sobre sua vida havia sido contada de maneira errada. Ela diz que não era uma Pea Pecker e que passou anos envergonhada por ter sua imagem associada a uma situação de pobreza extrema. Em sua versão, ela estava viajando com o marido e seus 6 filhos quando o carro quebrou na beira da estrada. Enquanto, seu esposo foi até a cidade mais próxima para comprar uma peça de reposição, ela montou uma tenda e preparou o almoço.Foi nesse momento que Lange apareceu e tirou a foto.

Com esse novo depoimento, muitas pessoas passaram a criticar o posicionamento ético de Lange. Acusaram-na de não ter coletado informações suficientes sobre a mulher e de ter orquestrado as poses da foto. Infelizmente, a fotógrafa já havia falecido há 10 anos e nunca pôde rebater as críticas.

Pensando na ética envolvida na produção desta fotografia e utilizando os depoimentos que temos junto às seis fotos feitas no encontro de Lange e Thompson, fica difícil apoiar apenas um lado como sendo o correto. Mesmo que Lange não tenha necessariamente contado a história exata, ela fez uma foto que serviu como simulacro para todo um grupo que acabou se beneficiando da repercussão da imagem. Florence, que mesmo tendo se sentindo envergonhada por causa da foto por um longo período de sua vida, também se beneficia dela, já que, nos anos 80, ela precisou se submeter a uma cirurgia que somente através da venda de cópias da foto foi possível de ser paga. No final, a foto carrega duas histórias, a de um povo sofredor, que conseguiu passar por um dos mais terríveis períodos da história dos Estados Unidos e a de uma mulher, que sem querer virou um símbolo de luta depois de um encontro de 15 minutos com uma fotógrafa.

Dorothea Lange, Nipomo, California, EUA, 1936
Dorothea Lange, Nipomo, California, EUA, 1936
Dorothea Lange, Nipomo, California, EUA, 1936
Dorothea Lange, Nipomo, California, EUA, 1936
Dorothea Lange, Nipomo, California, EUA, 1936

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CAVALHEIRO, Pedro Olavo Pedroso. A Mãe Migrante. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: <https://culturafotografica.com.br/a-mae-migrante/>. Publicado em: 02 de jun. de 2021. Acessado em: [informar data].

Contraponto em “Filhos de Douma” de Abd Doumany

A série de fotografias de Abd Doumany registra as consequências da incessante guerra na Síria.

Em 2016, o fotojornalista Abd Doumany realizou a série “Filhos de Douma”, que trata da realidade de crianças que vivem em meio aos conflitos armados na cidade de Douma, na Síria. Não é fácil ficar diante de fotografias tão chocantes, mas esses registros fazem parte dos documentos que denunciam as consequências da guerra na Síria.

Homem carrega o corpo de uma criança morta em um ataque aéreo, em 2016. ( AFP/ Abd Doumany).

Na fotografia acima, o homem que carrega o corpo da criança tem sua atenção voltada para o rosto dela. Penso que essa cena também retrata um momento muito íntimo de resignação e piedade, como também evidencia os resultados dos conflitos ideológicos e identitários presentes na Síria, mas esses conflitos não são uma novidade.

Após a 1°Guerra Mundial, os países europeus começaram o processo de colonização no Oriente Médio. Em 1920, a França colonizou a Síria e 26 anos depois o país conquistou sua independência. Porém, até hoje os conflitos identitários utilizados pelos colonizadores para exercerem poder na região não foram resolvidos e vários grupos brigam pelo comando e pela ideia de nação a ser implementada no país.

Em 1971, Hafez Al-Assad foi eleito presidente do país. Ele deixou a presidência no ano 2000 e foi sucedido pelo seu filho Bashar Al-Assad, que assumiu o poder mesmo após fraudes eleitorais acerca de sua candidatura terem sido provadas.

Em 2011, várias manifestações puseram abaixo governos ditatoriais de vários países do Oriente Médio e alguns ditadores foram mortos. Esse momento ficou conhecido como “Primavera Arabe”. Todavia, na Síria, Bashar Al-Assad reprimiu fortemente as manifestações e conseguiu se manter no comando do país.

Tanta repressão levou grupos civis a se unirem contra o governo Al-Assad, dando início a vários ataques contra o exército oficial do país em diferentes regiões da Síria. Douma encontra-se em ruínas após tantos conflitos e bombardeios. A vida cotidiana, portanto, é destroçada pela guerra, consequência da modernidade eurocêntrica e colonizadora.

“No mundo moderno, aqueles que são mais felizes na tranqüilidade doméstica, talvez sejam os mais vulneráveis aos demônios que assediam esse mundo; a rotina diária dos parques e bicicletas, das compras, do comer e limpar-se, dos abraços e beijos costumeiros, talvez não seja apenas infinitamente bela e festiva, mas também infinitamente frágil e precária”(BERMAN, 2007, pp.14).

Menina e menina em leito no hospital. (AFP. Abd Doumany, 2016).

A menina que nos observa através da fotografia, revela uma ruptura com o tempo: não observamos apenas a fotografia de um cenário hospitalar, mas também entramos em contato com um momento do conflito e com a possível bomba inesperada que atingiu sua casa. Me sinto estática observando essa fotografia.
A guerra e suas causas tornam-se uma justificativa óbvia para compreender “Filhos de Douma”. Contudo, não é. Apesar das leituras sobre os processos e o progresso em voga no mundo moderno, alicerçados nas suas mais terríveis consequências, estar diante desse trabalho não é fácil, mas acredito em sua necessidade, pois há guerras no mundo e elas precisam ser denunciadas.
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A fotografia em Estou me guardando para quando o Carnaval chegar

Documentário conta com uma esplêndida fotografia que revela o interior do Brasil.

A delicada narração de Marcelo Gomes em “Estou me guardando para quando o carnaval chegar” pode ser resumida em uma só fotografia. Desde as cores até o posicionamento dos trabalhadores, cada detalhe da imagem emite uma mensagem silenciosa que está à espera de ser decifrada.
 
Marcelo Gomes


No sexto minuto do filme somos apresentados a uma rotina de produção de jeans. Os estímulos que antes se misturavam entre barulhos ensurdecedores e a rapidez dos trabalhadores, são guiados apenas para a imagem acima, revelando a intrínseca mensagem do longa sobre uma cidadezinha pernambucana chamada Toritama, também conhecida como a Cidade dos Jeans.
O registro chega a transmitir certa calmaria, apesar dos movimentos dos trabalhadores fazerem o leitor imaginar o barulho por trás de tal exercício. É incerto o que os operários fazem a seguir, mas o enquadramento cria a sensação de que seja qual for a atividade, ela não acabará tão cedo, como em um processo contínuo que começa no último homem da imagem, mas não termina no primeiro.
Não é mera coincidência que a paleta de cores das roupas dos trabalhadores, azul e branco, se misturem com as mesmas cores da parede, mesas e acessórios. Na verdade, a escolha de relacionar os personagens da fotografia com seu ambiente, parece insinuar uma perda de identidade. Quase como se os quatro homens da imagem, que estão curvados em um tom sério, ao ficarem imersos em suas tarefas não podem mais ser distinguidos do local onde trabalham. Se fundindo e tornando-se invisíveis.
A placidez e neutralidade da imagem é também um manifesto para os sentimentos. Não existe entusiasmo ou alegria. Apenas uma indestrutível concentração. É claro que nem todos os trabalhos equivalem a um parque de diversões, isso também não significa que as pessoas da imagem odeiam seus trabalhos, apenas que a escolha visual ressalta uma rotina enfadonha e frustrante. Não são apenas efeitos físicos, longas e exaustivas horas de trabalho podem afetar a saúde mental de qualquer pessoa também.
Os movimentos de braço, repetidos por todos os trabalhadores, criam a impressão de uma coreografia bem ensaiada. Como se todos, propositalmente ou não, tivessem sido programados para a mesma rotina. O foco aqui não é no rosto desses indivíduos ou suas histórias únicas, é em como esses homens se transformam durante o trabalho, abrindo mão de tudo a fim de uma boa produção.
A fotografia explicita um dilema na indústria atual brasileira. Boa parte da produção de vários tipos de produtos ainda é baseada no uso de mão de obra barata. Porém, enquanto esse fato acaba gerando muitos empregos para pessoas de baixa escolaridade, como para os moradores da cidade de Toritama, os trabalhadores doam todo o seu corpo e alma para a indústria. Perdem sua identidade e se tornam apenas em força de trabalho. Ao mesmo tempo que precisam do emprego para viver, perdem parte de suas vidas em condições desumanas e salários que não pagam por seus devidos esforços. 

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Aida Muluneh: Infâncias ao redor do mundo

Um olhar sobre a foto de Aida Muluneh que evoca uma doce nostalgia e ao mesmo tempo uma curiosidade sobre os personagens por trás do momento capturado.

A imagem abaixo faz parte do portfólio fotojornalístico da fotógrafa Aida Muluneh, um lado bem diferente do apresentado na sua galeria que você pode encontrar aqui no blog, mas que também foca em criar uma nova perspectiva sobre a Etiópia. Ao se mudar ainda nova do país, algumas lembranças de sua infância são misturadas com narrativas sobre a África que seus colegas conheciam. Essas histórias que reduzem todas as diferentes culturas do continente a problemas humanitários, fez com que Muluneh resolvesse fotografar o dia a dia da Etiópia por uma lente mais otimista.

Aida Muluneh

“Garoto pulando no banho de Fasiladas durante o Timkat”, mostra um garoto pulando dentro de um lago no qual vários outros homens estão se banhando. A princípio, esta fotografia me lembrou de minha infância. De quando minha mãe me levava para ver o meu tio-avô em Taquaraçu de Minas e as tardes se resumiam a nadar no rio Taquaraçu. Era tanta gente se banhando nas cachoeiras e no rio que a quantidade de pessoas mostradas na imagem naturalmente me fizeram lembrar desses momentos doces. Comecei a refletir sobre a infância etíope, sobre como ela deveria ser ou sobre o quão parecida ela é em relação à brasileira.

O preto e branco, assim como o foco centralizado no garoto, emitem um estado reconfortante, quase como uma lembrança tirada do fundo de uma memória. Há algo de muito comum em um menino se divertindo no lago, o que torna a obra ainda mais nostálgica. Esses signos quase universais, como o ato de brincar com a água ou o de pular com os amigos, fortalecem a comunicação da imagem com lembranças de infâncias ao redor do mundo.

O fato de todos no registro serem homens nus é um tanto curioso, porém longe de ser uma coincidência. Ao pesquisar um pouco mais sobre o trabalho descobri que a imagem foi registrada na província de Beghemidir em Gondar, Etiópia, durante uma data festiva chamada Timkat. O Timkat é uma celebração da Epifania da Igreja Ortodoxa Etíope e da Igreja Ortodoxa Tewahedo da Eritreia. É comemorado em 19 de janeiro, que corresponde ao 11º dia de Terr no calendário Ge’ez. Timkat celebra o batismo de Jesus no rio Jordão, por isso todos os homens no lago estão nus, como em uma reconstituição do batismo sagrado. 
A quantidade de similaridades só aumentou com esse fato. O Brasil, que é um país cuja população é, em sua maioria, cristã, compartilha de várias comemorações religiosas como o Timkat. A Festa do Batismo do Senhor, por exemplo, também comemora o batismo sagrado, porém não existe nenhum ritual parecido como o etíope, seria apenas um encerramento do ciclo natalino. A Lavagem do Bonfim, a Festa do Sairé e a Festa da Nossa Senhora das Águas são outras festividades que envolvem algum tipo de afluente em sua prática.
Entretanto, é importante ressaltar que não foi necessário pesquisar sobre a imagem para que, como leitora, me identificasse com essa. E é aí que está a mágica, criar conexões imediatas através de interpretações singulares feitas por cada leitor, mas que evocam um sentimento universal, de familiaridade. Muluneh cumpre o que pretendia com o projeto e apresenta a verdadeira Etiópia para o mundo, a Etiópia que é como todos os outros países, com suas mazelas e defeitos, mas também com a sua beleza única. Uma maneira eficiente de aproximar culturas diferentes é mostrando as suas semelhanças. A artista faz isso quando mostra elementos de identificação e ativa o imaginário do leitor, que lê a fotografia da sua maneira, remetendo à própria vida e cultura. 
Não existem interpretações fixas quando o assunto é leitura de imagens. Sendo assim, ao olhar para a fotografia de Aida Muluneh, com quais elementos você se identifica?

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Rituais fúnebres em “Ventos de Agosto”

Se você soltou pipa algum dia na vida, sabe que os tão esperados ventos de Agosto são bem fortes!


Ventos de Agosto (2014), filme brasileiro dirigido por Gabriel Mascaro, explora a dicotomia entre vida e morte de  forma bem inesperada para quem geralmente está habituado aos rituais fúnebres tradicionais. Entre as ondas do mar e o vento lançado à praia, o personagem interpretado por Gabriel Mascaro, chega à comunidade de Porto de Pedras (AL) e muda todo o cotidiano das pessoas que residem na “quarta curva depois da boca do rio, quebrando a esquerda”.


Shirley e Jeison conversam com um dos pescadores da comunidade acerca do crânio que Jeison encontrou no mar ao fazer um mergulho. Fotograma de Gabriel Mascaro, cena do filme “Ventos de Agosto” de 2014. 28 ’54”.

Interpretada por Dandara de Morais, Shirley e Jeison, interpretado por Geová Manoel, vivem um relacionamento de descobertas e buscam consolidar suas identidades. Shirley saiu da cidade, para cuidar de sua avó, com o sonho de se tornar uma tatuadora e Jeison, mora com seu pai na pequena comunidade. 

Era para ser um dia como o outro, mas Jeison encontra um crânio no mar, e sua relação com a morte muda a partir daí. Mas essa história não envolve apenas Jeison. Toda a comunidade vai se dando conta da importância dos seus mortos, que tomam conta do enredo do filme, evidenciando que a memória, a história e as lembranças das pessoas em relação ao local em que vivem, também são narradas por quem já passou  na comunidade.


Shirley e Jeison, sentados em um túmulo, conversando sobre a vida na comunidade.  Fotograma de Gabriel Mascaro, da cena do filme “Ventos de Agosto” de 2014. Cena do cartaz de exibição da Cultura.PE.

Segundo Cohen (2002, p.2) “estudos arqueológicos indicam que rituais e práticas concernentes à morte e ao cadáver são tão antigos quanto o homem de Neanderthal ou seus ancestrais. O tratamento proposto ao corpo, os objetos colocados junto a ele,  sua posição no sepultamento, as pinturas e as inscrições em sua lápide, consistem em indícios da elaboração de valores e crenças sobre a vida e a morte. Aliás, rituais fúnebres encenam  a morte, tanto quanto a vida. (apud MENEZES, GOMES, 2011. p. 122).

Gostou do filme? Deixe aqui nos comentários suas experiências com rituais fúnebres, dicas e afins.  Até a próxima!

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Gold: Sebastião Salgado

Em sua última obra publicada, o fotógrafo Sebastião Salgado evidencia a opressão sofrida por trabalhadores do Garimpo de Serra Pelada.

Em sua última obra publicada, o fotógrafo Sebastião Salgado evidencia a opressão sofrida por trabalhadores do Garimpo de Serra Pelada.

Essa foto foi tomada no ano de 1986, quando Sebastião Salgado visitou o garimpo de Serra Pelada, no sudeste do Pará, enquanto produzia imagens para seu livro “Trabalhadores”, publicado em 1996. Mais de 30 anos depois, em 2019, o fotógrafo mineiro publica uma nova obra, chamada Gold com esta e outras fotografias, algumas já publicadas e umas inéditas.

Foto de Sebastião Salgado, Sem Título, Garimpo de Serra Pelada, 1986

Sebastião não foi o primeiro a retratar o garimpo de Serra Pelada, o pioneirismo foi do fotojornalista português naturalizado brasileiro, Juca Martins, que conseguiu acesso alguns anos antes. Talvez o que difere o trabalho de um e de outro, seja o fato de Salgado não ver o local apenas como um fotógrafo ou jornalista, mas como um economista que possui um olhar treinado para perceber como o capitalismo explora a força de trabalho.

Esse seu modo de retratar as pessoas já rendeu a ele algumas críticas, como as da escritora Susan Sontag que o acusou de estetizar a miséria. No entanto, nessa imagem, e em toda a série de fotos, por mais que seja mostrada a miséria de muitos, é possível observar como o fotógrafo busca mostrar a força e empoderar o trabalhador através de pequenas nuances.

Não se pode afirmar, se foi proposital, ou apenas obra do acaso, mas o fotógrafo está em uma posição abaixo das pessoas fotografadas, captando-as em um ângulo conhecido como contra-plongée. Assim, o garimpeiro, que já parecia enorme em comparação com o guarda, toma uma dimensão ainda mais grandiosa. Além do ângulo de visão, também existem alguns outros detalhes técnicos pensados para dar ainda mais magnitude ao trabalhador.

Através de uma fotometria muito bem calculada, uma luz suave e com o uso do preto e branco, que é excelente para realçar textura, temos uma foto com contraste muito suave, realçando a musculatura do trabalhador fazendo com que ele pareça ainda mais forte. Tudo isso se complementa com o ato de rebeldia feito por ele.

Na foto vemos um dos trabalhadores desafiar a ordem imposta pelo estado segurando o cano da arma do policial. Vista de maneira subjetiva, nessa imagem percebe-se a força dos trabalhadores como um todo, a capacidade que eles possuem para desafiar o sistema que os oprime. O que fica ainda mais interessante pelo fato de Sebastião a compor em um plano médio com uma grande profundidade de campo, mostrando os rostos dos trabalhadores que estão ao redor, captando uma enorme gama de emoções em seus rostos.

Como Sebastião narra no texto de introdução do livro Gold, existiam postos da polícia militar espalhados por todo garimpo. Os agentes do estado eram colocados lá para manter a ordem e proteger os interesses da Companhia Vale do Rio Doce, que exercia enorme influência econômica e política no estado do Pará.

Por fim vemos uma foto, feita por um fotógrafo que sabe muito bem como utilizar elementos compositivos, tanto quanto técnicos, que é capaz de perceber a força e a esperança em meio a miséria e o caos e que consegue transformar alguns milésimos de segundo em uma forte crítica a todo um sistema e a sociedade que o sustenta.

Gostou da foto? Você tem uma interpretação diferente? Conta pra gente aqui nos comentários! E não se esqueça de nos seguir no Instagram para ficar por dentro de todo o nosso conteúdo!

Links, Referências e Créditos

  • https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/17/opinion/1563391633_402162.html
  • https://www.uol.com.br/urbantaste/noticias/redacao/2019/08/15/exposicao-de-sebastiao-salgado-retrata-sonhos-e-caos-em-busca-do-ouro.htm
  • https://www.youtube.com/watch?v=HAMZQZCYqiU&amp;t=5s
  • https://www.youtube.com/watch?v=mxTG1JKdGgc
  • Livro: SALGADO, Sebastião, SALGADO, Lélia Wanick. Gold, 2019, Editora Taschen

Como citar esta postagem

CAVALHEIRO, Pedro Olavo Pedroso. Gold: Sebastião Salgado. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: <https://culturafotografica.com.br/leitura-gold-sebastiao-salgado/>. Publicado em: 25 de maio .

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