A cor da morte é preta

Do pardo ao preto, da marginalização ao genocídio, o negro.

Do pardo ao preto, da marginalização ao genocídio, o negro.

No Brasil a cor da morte é preta e a violência segue essa paleta de cor à risca, que define o critério de morte ou vida, de negar ou permitir, de ser bom ou mau de clarear ou denegrir.

Manifestantes durante o ato Vidas Negras Importam, ocupam ruas na Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo. Em primeiro plano há uma mulher com um megafone em sua mão direita que parece gritar, ela mantém sua máscara de proteção abaixo do queixo para falar ao aparelho. Ao fundo vemos um grupo de pessoas em sua maioria identificável, mulheres negras que utilizam máscaras de proteção, segurando cartazes com frases, nomes, idades, e fotos, podemos identificar completamente os dizeres de pelo menos um cartaz que traz a frase: "Felipe Santos 18 anos ???” e uma foto de um menino negro abaixo. Em relação a outros cartazes, podemos deduzir que estão escritas as frases “Paulo Gabriel 6 anos” “Paulo Amaral 8 anos violência Policial” e “No brasil um jovem preto é assassinado a cada 23 minutos”. No plano ao fundo, pode-se ver construções, casas e prédios, uma fiação de rede elétrica em uma altura baixa, e algumas árvores.
Bruno Santos/Folhapress

O autor da imagem é o fotógrafo Bruno Santos, e a fotografia ilustra uma matéria publicada pela Folha de São Paulo com o título “Parem de matar nossos filhos”. A fotografia mostra manifestantes carregando cartazes, com nomes de jovens mortos em ações policiais durante o ato “Vidas Negras Importam”.   

A foto, tirada no ano de 2020, na cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, me traz a impressão de que poderia ter sido tirada esse ano, ou nos próximos, em qualquer cidade do Brasil. Pois ela retrata a reivindicação de respostas ao genocídio de pessoas pretas, que são assassinadas a cada 23 minutos em todo país, e na maioria esmagadora dos casos, são acontecimentos invisibilizados e esquecidos.

Os cartazes presentes na imagem, apesar de estarem em segundo plano, são os primeiros a chamarem minha atenção. Por se tratarem de códigos linguísticos, eles nos convidam a lê-los. Os cartazes estampam frases, nomes, números, e dores. Estampam vidas perdidas e desaparecidas. Estampam a morte e reivindicam respostas sobre ela, trazem voz ao silêncio mantido sobre essas mortes, e transformam o medo em revolta. Escrevem, em cima do apagamento desses assassinatos, “reivindicação”.

O grupo de manifestantes composto majoritariamente de mulheres negras, que seguram os cartazes, é o segundo ponto da imagem que meus olhos percorrem. Essas pessoas trazem semblantes pesados e de sofrimento e demonstram que além da pele de quem morre ser preta, a dor acima de tudo, quem sente são corpos pretos. Esses indivíduos reivindicam o direito à vida de pessoas negras, sua importância e acima de tudo sua dignidade. 

A mulher que ganha destaque no primeiro plano da fotografia, é a próxima parada da minha observação. Ao falar em um megafone ela traz em seu rosto uma expressão carregada de força e dor. A imagem grita, ainda que sem qualquer som, a dor que o povo preto sente e tem que transformar em força. Grita como essas mulheres, e acima de tudo essas mães que perderam seus filhos, tem que lutar por eles para reivindicar a vida, ainda que na morte. E ter esperança para transformar todo seu sofrimento, nessa luta.

Toda a cena presente na fotografia me tira o ar e o chão, me imprime cansaço e desespero, me traz a dor de saber que o meu povo precisa lutar apenas pelo direito de viver. Esses jovens assassinados tem uma pele como a minha, que carrega tanto significado, tanta vida, tanta gente, que me carrega também. Ao ver essa imagem, ela me fere. Mas como mulher negra, essa imagem também me traz força, a força que é necessária mesmo na dor e especialmente nela. A força para lutar, para que mais mães não percam seus filhos pretos, para que mais negros não tenham suas vidas roubadas. Que possamos ter essa força para reivindicar nossos direitos.

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Sobre a autora

Isadora Lúcia de Souza Silva é bacharelanda em Jornalismo pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

Movimento Vidas Negras Importam

A revolta que une manifestantes no isolamento social.

A revolta que une manifestantes no isolamento social.

A imagem de autoria de Bruno Santos foi publicada no dia 4 de julho de 2021 no jornal Folha de São Paulo com a legenda: “Manifestantes carregam cartazes com nomes de jovens mortos em ações policiais, durante o Ato Vidas Negras Importam, em Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo”. O título da matéria: ‘Parem de matar nossos filhos’.

Manifestantes erguendo cartazes com os nomes de jovens negros assassinados. Os manifestantes usam máscaras e uma delas parece gritar ao megafone.
Bruno Santos

O protesto organizado por 15 coletivos do movimento negro e frentes populares da periferia de São Paulo teve como objetivo obter respostas para a morte de cinco jovens assassinados pela polícia militar. Além disso, o grupo reivindicava o acesso à saúde na zona leste da capital durante a pandemia.

A fotografia de Bruno Santos acredito que atrai o olhar e nos toca de duas formas. Primeiro, mais superficialmente, por ser uma foto muito bem tirada que gravou o momento exato do grito da mulher à direita e, também, pela posição do fotógrafo que se colocou contra o sol forte. Os manifestantes ao fundo tem os olhos semicerrados devido a forte luz solar, incrementando a fisionomia que expressa não apenas raiva, como tristeza e frustração, além de diversas outras emoções provocadas na manifestação.

Numa segunda análise, mais aprofundada, por tratar de um assunto recorrente e desumano, a imagem nos faz repensar os privilégios da parcela branca rica da população e a consequente morte da metade negra e periférica, impulsionadas unicamente pelo racismo estrutural arraigado na sociedade brasileira.

Pensar que em meio a uma pandemia pessoas tiveram de sair de suas casas para defender o direito a vida de seus filhos e cobrar respostas pela morte precoce deles pelas mãos do próprio Estado que, supostamente deveria proteger seus cidadãos, é no mínimo revoltante, motivo não apenas para questionar mas derrubar as estruturas de privilégio existentes.

O movimento Vidas Negra Importam teve início nos Estados Unidos e se espalhou por diversos países e continentes. Entretanto, nenhum deles possui uma realidade de extermínio da população negra como o Brasil e os Estados Unidos. Ambos antigas colônias repletas de escravizados, os dois países em muito se assemelham quando o assunto é a luta racial. Ambos ainda têm muito o que reivindicar.

Todavia, por mais que em muito se assemelham, a história e vivência da população negra estadunidense e brasileira não são idênticas. Cada sociedade possui dificuldades próprias e é preciso que o povo brasileiro perceba e lute a partir disto, se não acabará por importar questões que não inteiramente cabem em nossa vivência e, inevitavelmente, acabará deixando de lado problemas intrínsecos a nossa realidade.

É preciso que o Brasil branco se informe e atue juntamente com a população negra contra as máquinas racistas do Estado. Como disse a ativista estadunidense Angela Davis: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista é necessário ser antirracista”.

A pandemia se amenizou, mas o racismo a cada dia descobre novas formas de alcançar e dominar as estruturas de poder. É preciso ir às ruas, é preciso ir à luta.

#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.

Como citar este artigo

Couto, Sarah. Movimento Vidas Negras Importam. Cultura Fotográfica (blog). Disponível em: <https://culturafotografica.com.br/movimento-vidas-negras-importam/>. Publicado em: 22/07/2022. Acessado em: [informar a data]. 

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