Categoria: Assuntos

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  • Contraponto em “Filhos de Douma” de Abd Doumany

    A série de fotografias de Abd Doumany registra as consequências da incessante guerra na Síria.

    Em 2016, o fotojornalista Abd Doumany realizou a série “Filhos de Douma”, que trata da realidade de crianças que vivem em meio aos conflitos armados na cidade de Douma, na Síria. Não é fácil ficar diante de fotografias tão chocantes, mas esses registros fazem parte dos documentos que denunciam as consequências da guerra na Síria.

    Homem carrega o corpo de uma criança morta em um ataque aéreo, em 2016. ( AFP/ Abd Doumany).

    Na fotografia acima, o homem que carrega o corpo da criança tem sua atenção voltada para o rosto dela. Penso que essa cena também retrata um momento muito íntimo de resignação e piedade, como também evidencia os resultados dos conflitos ideológicos e identitários presentes na Síria, mas esses conflitos não são uma novidade.

    Após a 1°Guerra Mundial, os países europeus começaram o processo de colonização no Oriente Médio. Em 1920, a França colonizou a Síria e 26 anos depois o país conquistou sua independência. Porém, até hoje os conflitos identitários utilizados pelos colonizadores para exercerem poder na região não foram resolvidos e vários grupos brigam pelo comando e pela ideia de nação a ser implementada no país.

    Em 1971, Hafez Al-Assad foi eleito presidente do país. Ele deixou a presidência no ano 2000 e foi sucedido pelo seu filho Bashar Al-Assad, que assumiu o poder mesmo após fraudes eleitorais acerca de sua candidatura terem sido provadas.

    Em 2011, várias manifestações puseram abaixo governos ditatoriais de vários países do Oriente Médio e alguns ditadores foram mortos. Esse momento ficou conhecido como “Primavera Arabe”. Todavia, na Síria, Bashar Al-Assad reprimiu fortemente as manifestações e conseguiu se manter no comando do país.

    Tanta repressão levou grupos civis a se unirem contra o governo Al-Assad, dando início a vários ataques contra o exército oficial do país em diferentes regiões da Síria. Douma encontra-se em ruínas após tantos conflitos e bombardeios. A vida cotidiana, portanto, é destroçada pela guerra, consequência da modernidade eurocêntrica e colonizadora.

    “No mundo moderno, aqueles que são mais felizes na tranqüilidade doméstica, talvez sejam os mais vulneráveis aos demônios que assediam esse mundo; a rotina diária dos parques e bicicletas, das compras, do comer e limpar-se, dos abraços e beijos costumeiros, talvez não seja apenas infinitamente bela e festiva, mas também infinitamente frágil e precária”(BERMAN, 2007, pp.14).

    Menina e menina em leito no hospital. (AFP. Abd Doumany, 2016).

    A menina que nos observa através da fotografia, revela uma ruptura com o tempo: não observamos apenas a fotografia de um cenário hospitalar, mas também entramos em contato com um momento do conflito e com a possível bomba inesperada que atingiu sua casa. Me sinto estática observando essa fotografia.
    A guerra e suas causas tornam-se uma justificativa óbvia para compreender “Filhos de Douma”. Contudo, não é. Apesar das leituras sobre os processos e o progresso em voga no mundo moderno, alicerçados nas suas mais terríveis consequências, estar diante desse trabalho não é fácil, mas acredito em sua necessidade, pois há guerras no mundo e elas precisam ser denunciadas.
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    #leitura é uma coluna de caráter reflexivo. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, histórica, política, social. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor as postagens de coluna? É só seguir este link.

  • Filhos de Douma de Abd Doumany

    A série de fotografias de Abd Doumany apresenta o cotidiano de crianças que convivem com a guerra ou que têm sua vida tirada por ela.
    Em 2013, Abd Doumany começou a trabalhar como fotojornalista independente. No ano seguinte, foi contratado pela Agência France Presse (AFP), com quem trabalha até hoje. Ele também é voluntário do Crescente Vermelho Árabe Sírio, que ajuda pessoas atingidas pela guerra. Na série Filhos de Douma, o fotógrafo nos apresenta parte da realidade da guerra civil armada na Síria na vida das crianças.

    Abd Doumany / AFP

    Em 2012, a cidade de Douma foi tomada pela Coalizão Nacional Síria, que faz oposição às Forças armadas do atual governo da família Assad, que desde 1971 se mantém no comando do país. Com o intuito de tomar a cidade de volta, Bashar Al- Assad, atual presidente do país, lidera tropas contra a Coalizão.
    Estas fotografias tomadas em um país distante nos indignam tanto porque nos mostra o sofrimento daquelas crianças sírias, quanto porque nos faz lembrar que aqui, próximo a nós, muitas crianças enfrentam realidades tão duras quanto as mostradas por Doumany.
    Abd Doumany / AFP

    Abd Doumany / AFP

    Abd Doumany / AFP

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    #galeria é uma coluna de caráter informativo. Trata-se de uma série de postagens que apresenta um recorte da obra de uma fotógrafa ou fotógrafo de relevância artística, cultural, histórica, política ou social, acompanhadas por uma breve biografia sua. Quer conhecer outras postagens desta coluna? É só seguir este link.

  • A fotografia em Estou me guardando para quando o Carnaval chegar

    Documentário conta com uma esplêndida fotografia que revela o interior do Brasil.

    A delicada narração de Marcelo Gomes em “Estou me guardando para quando o carnaval chegar” pode ser resumida em uma só fotografia. Desde as cores até o posicionamento dos trabalhadores, cada detalhe da imagem emite uma mensagem silenciosa que está à espera de ser decifrada.
     
    Marcelo Gomes


    No sexto minuto do filme somos apresentados a uma rotina de produção de jeans. Os estímulos que antes se misturavam entre barulhos ensurdecedores e a rapidez dos trabalhadores, são guiados apenas para a imagem acima, revelando a intrínseca mensagem do longa sobre uma cidadezinha pernambucana chamada Toritama, também conhecida como a Cidade dos Jeans.
    O registro chega a transmitir certa calmaria, apesar dos movimentos dos trabalhadores fazerem o leitor imaginar o barulho por trás de tal exercício. É incerto o que os operários fazem a seguir, mas o enquadramento cria a sensação de que seja qual for a atividade, ela não acabará tão cedo, como em um processo contínuo que começa no último homem da imagem, mas não termina no primeiro.
    Não é mera coincidência que a paleta de cores das roupas dos trabalhadores, azul e branco, se misturem com as mesmas cores da parede, mesas e acessórios. Na verdade, a escolha de relacionar os personagens da fotografia com seu ambiente, parece insinuar uma perda de identidade. Quase como se os quatro homens da imagem, que estão curvados em um tom sério, ao ficarem imersos em suas tarefas não podem mais ser distinguidos do local onde trabalham. Se fundindo e tornando-se invisíveis.
    A placidez e neutralidade da imagem é também um manifesto para os sentimentos. Não existe entusiasmo ou alegria. Apenas uma indestrutível concentração. É claro que nem todos os trabalhos equivalem a um parque de diversões, isso também não significa que as pessoas da imagem odeiam seus trabalhos, apenas que a escolha visual ressalta uma rotina enfadonha e frustrante. Não são apenas efeitos físicos, longas e exaustivas horas de trabalho podem afetar a saúde mental de qualquer pessoa também.
    Os movimentos de braço, repetidos por todos os trabalhadores, criam a impressão de uma coreografia bem ensaiada. Como se todos, propositalmente ou não, tivessem sido programados para a mesma rotina. O foco aqui não é no rosto desses indivíduos ou suas histórias únicas, é em como esses homens se transformam durante o trabalho, abrindo mão de tudo a fim de uma boa produção.
    A fotografia explicita um dilema na indústria atual brasileira. Boa parte da produção de vários tipos de produtos ainda é baseada no uso de mão de obra barata. Porém, enquanto esse fato acaba gerando muitos empregos para pessoas de baixa escolaridade, como para os moradores da cidade de Toritama, os trabalhadores doam todo o seu corpo e alma para a indústria. Perdem sua identidade e se tornam apenas em força de trabalho. Ao mesmo tempo que precisam do emprego para viver, perdem parte de suas vidas em condições desumanas e salários que não pagam por seus devidos esforços. 

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  • Sérgio Jorge: ícone do fotojornalismo brasileiro

    7 fotografias que narram um pouco sobre o Brasil pelas lentes de Sérgio Jorge.

    É difícil falar sobre a história do Brasil sem citar Sérgio Jorge. Com mais de 60 anos de carreira, foram inúmeros acontecimentos marcantes registrados pela lente do fotógrafo, como o milésimo gol do Pelé, a inauguração de Brasília e o incêndio do Edifício Joelma. Relembrar as fotos do artista é olhar para um pedacinho do Brasil que nunca será esquecido.
    Retrato de Sérgio Jorge/ Foto: Ricardo Beccari
    Nascido em Amparo, interior de São Paulo, Jorge fotografava como um caipira descobrindo as belezas da cidade grande. Foi o primeiro vencedor do Prêmio Esso de Jornalismo, em 1960, com o flagrante de um garoto apavorado em ver seu cachorro sendo levado pela carrocinha. A escolha de fotografar esses momentos singelos e cotidianos configura a maneira como o fotógrafo via o mundo. Sérgio Jorge faleceu com 83, no dia 30 de novembro de 2020, em decorrência de complicações causadas pela covid-19.
    Sérgio Jorge

    Sérgio Jorge

    Sérgio Jorge

    Sérgio Jorge

    Sérgio Jorge

    Sérgio Jorge

    Sérgio Jorge

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  • Aida Muluneh: Infâncias ao redor do mundo

    Um olhar sobre a foto de Aida Muluneh que evoca uma doce nostalgia e ao mesmo tempo uma curiosidade sobre os personagens por trás do momento capturado.

    A imagem abaixo faz parte do portfólio fotojornalístico da fotógrafa Aida Muluneh, um lado bem diferente do apresentado na sua galeria que você pode encontrar aqui no blog, mas que também foca em criar uma nova perspectiva sobre a Etiópia. Ao se mudar ainda nova do país, algumas lembranças de sua infância são misturadas com narrativas sobre a África que seus colegas conheciam. Essas histórias que reduzem todas as diferentes culturas do continente a problemas humanitários, fez com que Muluneh resolvesse fotografar o dia a dia da Etiópia por uma lente mais otimista.

    Aida Muluneh

    “Garoto pulando no banho de Fasiladas durante o Timkat”, mostra um garoto pulando dentro de um lago no qual vários outros homens estão se banhando. A princípio, esta fotografia me lembrou de minha infância. De quando minha mãe me levava para ver o meu tio-avô em Taquaraçu de Minas e as tardes se resumiam a nadar no rio Taquaraçu. Era tanta gente se banhando nas cachoeiras e no rio que a quantidade de pessoas mostradas na imagem naturalmente me fizeram lembrar desses momentos doces. Comecei a refletir sobre a infância etíope, sobre como ela deveria ser ou sobre o quão parecida ela é em relação à brasileira.

    O preto e branco, assim como o foco centralizado no garoto, emitem um estado reconfortante, quase como uma lembrança tirada do fundo de uma memória. Há algo de muito comum em um menino se divertindo no lago, o que torna a obra ainda mais nostálgica. Esses signos quase universais, como o ato de brincar com a água ou o de pular com os amigos, fortalecem a comunicação da imagem com lembranças de infâncias ao redor do mundo.

    O fato de todos no registro serem homens nus é um tanto curioso, porém longe de ser uma coincidência. Ao pesquisar um pouco mais sobre o trabalho descobri que a imagem foi registrada na província de Beghemidir em Gondar, Etiópia, durante uma data festiva chamada Timkat. O Timkat é uma celebração da Epifania da Igreja Ortodoxa Etíope e da Igreja Ortodoxa Tewahedo da Eritreia. É comemorado em 19 de janeiro, que corresponde ao 11º dia de Terr no calendário Ge’ez. Timkat celebra o batismo de Jesus no rio Jordão, por isso todos os homens no lago estão nus, como em uma reconstituição do batismo sagrado. 
    A quantidade de similaridades só aumentou com esse fato. O Brasil, que é um país cuja população é, em sua maioria, cristã, compartilha de várias comemorações religiosas como o Timkat. A Festa do Batismo do Senhor, por exemplo, também comemora o batismo sagrado, porém não existe nenhum ritual parecido como o etíope, seria apenas um encerramento do ciclo natalino. A Lavagem do Bonfim, a Festa do Sairé e a Festa da Nossa Senhora das Águas são outras festividades que envolvem algum tipo de afluente em sua prática.
    Entretanto, é importante ressaltar que não foi necessário pesquisar sobre a imagem para que, como leitora, me identificasse com essa. E é aí que está a mágica, criar conexões imediatas através de interpretações singulares feitas por cada leitor, mas que evocam um sentimento universal, de familiaridade. Muluneh cumpre o que pretendia com o projeto e apresenta a verdadeira Etiópia para o mundo, a Etiópia que é como todos os outros países, com suas mazelas e defeitos, mas também com a sua beleza única. Uma maneira eficiente de aproximar culturas diferentes é mostrando as suas semelhanças. A artista faz isso quando mostra elementos de identificação e ativa o imaginário do leitor, que lê a fotografia da sua maneira, remetendo à própria vida e cultura. 
    Não existem interpretações fixas quando o assunto é leitura de imagens. Sendo assim, ao olhar para a fotografia de Aida Muluneh, com quais elementos você se identifica?

    Links, Referências e Créditos.

  • Rituais fúnebres em “Ventos de Agosto”

    Se você soltou pipa algum dia na vida, sabe que os tão esperados ventos de Agosto são bem fortes!


    Ventos de Agosto (2014), filme brasileiro dirigido por Gabriel Mascaro, explora a dicotomia entre vida e morte de  forma bem inesperada para quem geralmente está habituado aos rituais fúnebres tradicionais. Entre as ondas do mar e o vento lançado à praia, o personagem interpretado por Gabriel Mascaro, chega à comunidade de Porto de Pedras (AL) e muda todo o cotidiano das pessoas que residem na “quarta curva depois da boca do rio, quebrando a esquerda”.


    Shirley e Jeison conversam com um dos pescadores da comunidade acerca do crânio que Jeison encontrou no mar ao fazer um mergulho. Fotograma de Gabriel Mascaro, cena do filme “Ventos de Agosto” de 2014. 28 ’54”.

    Interpretada por Dandara de Morais, Shirley e Jeison, interpretado por Geová Manoel, vivem um relacionamento de descobertas e buscam consolidar suas identidades. Shirley saiu da cidade, para cuidar de sua avó, com o sonho de se tornar uma tatuadora e Jeison, mora com seu pai na pequena comunidade. 

    Era para ser um dia como o outro, mas Jeison encontra um crânio no mar, e sua relação com a morte muda a partir daí. Mas essa história não envolve apenas Jeison. Toda a comunidade vai se dando conta da importância dos seus mortos, que tomam conta do enredo do filme, evidenciando que a memória, a história e as lembranças das pessoas em relação ao local em que vivem, também são narradas por quem já passou  na comunidade.


    Shirley e Jeison, sentados em um túmulo, conversando sobre a vida na comunidade.  Fotograma de Gabriel Mascaro, da cena do filme “Ventos de Agosto” de 2014. Cena do cartaz de exibição da Cultura.PE.

    Segundo Cohen (2002, p.2) “estudos arqueológicos indicam que rituais e práticas concernentes à morte e ao cadáver são tão antigos quanto o homem de Neanderthal ou seus ancestrais. O tratamento proposto ao corpo, os objetos colocados junto a ele,  sua posição no sepultamento, as pinturas e as inscrições em sua lápide, consistem em indícios da elaboração de valores e crenças sobre a vida e a morte. Aliás, rituais fúnebres encenam  a morte, tanto quanto a vida. (apud MENEZES, GOMES, 2011. p. 122).

    Gostou do filme? Deixe aqui nos comentários suas experiências com rituais fúnebres, dicas e afins.  Até a próxima!

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  • Edição e Apresentação

     Terminar de fazer as fotografias não significa que seu projeto já esteja pronto, veja o que vem depois.

    Terminar de fazer as fotografias não significa que seu projeto já esteja pronto, veja o que vem depois.

    Layout de fotos da fotorreportagem “Hands Across the Water: Sea-watch Tries to Save the Migrants Europe Ignores”, de Daniel Elter, publicada na “Al Jazeera America”.
    Descrição: Sequência de fotografias coloridas. A primeira está acima das outras duas, é maior que as demais e retrata dois homens em um barco içando uma vela. A segunda retrata homens em um barco carregando um barril. A terceira, que está ao lado da segunda, retrata, através de uma janela do barco, homens examinando um mapa que está em cima de uma mesa.
    A palavra edição pode se referir a diversos processos diferentes que levam a um mesmo objetivo, a finalização e apresentação do seu projeto. Entre eles estão, por exemplo, a escolha das fotos que integrarão o projeto, o tratamento das imagens para correção ou efeitos estéticos e a produção da apresentação do projeto, o que pode se referir a organização de um layout para uma publicação impressa a transformações das fotografias em um produto audiovisual, entre tantas outras formas de se apresentar um projeto. Cada projeto pode requerer tipos específicos de edições, mas é possível dizer que todo projeto passará por uma edição do fotógrafo (a escolha e edição das fotos) e pela edição do designer (a construção do layout), sendo algumas vezes o fotógrafo o encarregado de ambas. Mesmo se não for o encarregado da edição do designer, o fotógrafo deve estar consciente do que concerne a essa atividade para que a escolha das fotografias seja feita com clareza.
    A apuração das imagens pelo fotógrafo pode seguir certos critérios como beleza, adequação ao tema ou à narrativa e praticidade, ou seja, a conveniência de certa foto dentro da apresentação, como quando uma foto é escolhida para preencher um espaço faltante ou fazer contraste com a foto anterior ou posterior. Sendo assim, para decidir quais fotos integrarão o projeto, o fotógrafo pode executar um processo análogo ao de peneirar. Primeiro se escolhe as fotos preferidas pelo visual e depois elimina entre essas as que não parecem fazer parte da narrativa. As demais podem ser classificadas de acordo com a necessidade do designer. Na dúvida entre duas fotografias, às vezes a mais bonita pode ser preterida por algum aspecto prático, como ser uma fotografia vertical quando na apresentação ficaria melhor uma horizontal.
    Em momentos como esse, a escolha das fotografias e a produção da apresentação parecem ser uma única coisa, com a segunda ditando a primeira. A apresentação define, por exemplo, se as fotografias serão agrupadas por justaposição ou em sequência e cada maneira demanda o seu próprio processo para a apuração das imagens. É possível dizer que a “edição do designer” possui um grande peso dentro do projeto, pois as imagens são extremamente afetadas pelo modo como são apresentadas. É a apresentação um dos poucos recursos para ganhar controle sobre o modo que a leitura das imagens será feita.
    É claro que o produto final pretendido terá maior ou menor participação nesse controle. Em um livro de fotografias, por exemplo, há a possibilidade de colocar várias fotografias por página, afetando umas às outras, e cada sequência pode ser lida como uma história à parte. Nesse caso, também é possível deixar uma fotografia em destaque colocando-a em um tamanho maior. Por outro lado, uma apresentação em slide pode ser limitante por manter todas as imagens do mesmo tamanho e em sequência, mas traz recursos de transições e a possibilidade de utilizar áudio, o que pode ser interessante.
    Daniel Elter – Abertura da fotorreportagem “Hands Across the Water: Sea-watch Tries to Save the Migrants Europe Ignores”, publicada na “Al Jazeera America”. A fotografia traz todos os elementos presentes no tema da reportagem: os imigrantes e a ONG Sea-Watch.
    Descrição: Fotografia colorida que mostra dois garotos em um cais observando um barco cuja lateral é pintada com as palavras “Sea-Watch”.
    Para entender como a apresentação do projeto afeta o entendimento sobre ele, sugiro visitar a fotorreportagem “Hands Across the Water: Sea-watch Tries to Save the Migrants Europe Ignores”, de Daniel Elter, publicada na “Al Jazeera America”. A reportagem, que conta como a ONG alemã Sea-Watch trabalha resgatando barcos com refugiados no Mar Mediterrâneo, foi escrita em inglês, mas para o exercício de interpretação de imagem a seguir o conteúdo escrito não é importante.
    A primeira observação acerca da escolha das fotografias e do design, pode ser feita já no título. Nem toda fotorreportagem opta por inserir o título na imagem de abertura, mas observe como é impactante e como a própria fotografia explica o título melhor do que as palavras. Também deve ser destacado como todos os elementos que a reportagem tratará estão presentes nessa fotografia, com os refugiados olhando para a embarcação da Sea-Watch. Em seguida, após o texto de introdução, há uma fotografia também puramente introdutória, a imagem do barco da Sea-Watch. O texto desenvolve-se explicando o trabalho da ONG no barco e as fotografias o acompanham ilustrando-o. Através de um layout com três fotos, a questão de tornar imagens dependentes, mas sem deixar ter uma em evidência, citado aqui no artigo, é posto em prática. A partir de então, a reportagem começa a apresentar as fotografias de destaque, evidenciadas também em relação ao texto, aparecendo em slides que cobrem a tela inteira. Esses slides interferem bastante na importância que o leitor dará a essas imagens, pois eles seguem o fluxo natural das leituras em páginas da web, passando de uma para outra conforme a página é rolada para baixo, mantendo o leitor em contato com essas fotografias por um tempo maior. As transições, por sua vez, introduzem lentamente a próxima imagem, estabelecendo uma conexão entre as duas, no momento em que se sobrepõem. É importante citar que a forma como os slides foram separados garante que fotografias que fazem parte do mesmo segmento narrativo fiquem juntas, seguindo a lógica das páginas seguidas e de mais de uma fotografia na mesma página.
    Tais artifícios foram provavelmente elaborados para se encaixar com esse modelo de fotorreportagem, mas são fatores que ajudam a refletir sobre como um projeto fotográfico implica em transcender as noções sobre fotografias e aplicá-las a outros mecanismos. Ou seja, um verdadeiro exercício de criatividade!
    Tem alguma fotorreportagem ou ensaio cuja apresentação te impactou? Divida ela conosco aqui nos comentários, explicando, como nos parágrafos acima, de que forma ela narra através da apresentação. Para saber sobre as nossas postagens, nos siga no Instagram.
    Outras postagens da série sobre ensaios e projetos fotográficos:

    Referências:

    • FOX, Anna, CARUANA, Natasha. Por trás da imagem. São Paulo: Gustavo Gili, 2014.
    • FREEMAN, Michael. A Narrativa Fotográfica: a arte de criar ensaios e reportagens visuais. Porto Alegre: Bookman, 2014.
    • SHORT, Maria. Contexto e Narrativa em Fotografia. São Paulo: Gustavo Gili, 2014.
  • Texto e Fotografia

     Será que uma fotografia bem feita suprime a necessidade de palavras?

     Será que uma fotografia bem feita suprime a necessidade de palavras?

    Pedro Kok – The Baths Of Viareggio, Italy
    Descrição: Fotografia colorida de uma fachada com um arco com um letreiro em que se pode ler “Nuova Italia”.

    “Uma imagem vale mais que mil palavras”. A frase de Confúcio, difundida ao nível de ditado popular, definitivamente não foi criada para julgar a relação entre fotografias, que estavam bem longe de existir, e textos, mas se encaixa muito bem com o pensamento recorrente de que o bom fotógrafo faz com que suas fotografias falem por si, a ponto de ser até questão de orgulho para alguns fotógrafos que suas fotos não necessitem de legendas. A verdade é que as fotografias, quando comparadas às palavras, realmente comunicam muito mais rapidamente e têm o poder de comunicar ações e características que em um texto necessitariam de muitas e muitas palavras para serem explicados.

    As imagens, todavia, possuem limites quanto a contextualização. Elas não contam, por exemplo, qual foi o acontecimento que gerou o momento retratado ou em que lugar e ocasião a ação se passa. As imagens comunicam um presente congelado no tempo, mas não fornecem explicações sobre ele e isso, às vezes, é limitador. Supondo que a sua narrativa tenha um objetivo político como alertar para violações de direitos humanos, por exemplo, as fotografias serão chocantes mesmo sem texto que as acompanhem, mas certamente a presença de dados sobre a frequência que tais violações ocorrem ou de declarações sobre as vítimas serão um reforço inestimável na construção de empatia do leitor e da capacidade informativa das suas fotografias. E, nesse caso, alcançar o leitor e espalhar conhecimento sobre o assunto é mais relevante do que a capacidade do fotógrafo de transmitir mensagens apenas através de imagens.

    Outra questão a ser levada em consideração ao pensar a relação entre o texto, principalmente como legenda, e a fotografia é se existe o risco que a não contextualização da imagem faça com que outros valores sejam atribuídos a ela. Quando a filósofa Susan Sontag discute, em seu livro “Sobre a Fotografia”, os valores que os “moralistas” esperam das fotografias, ela descreve que retirar as legendas das fotos jornalísticas expostas em museus e galerias é o que as torna obras de arte puramente estéticas, como se a falta de contexto sobre o que está retratado retirasse o valor documental da foto. Entretanto, a própria autora certifica que “nenhuma legenda consegue restringir, ou fixar, de forma permanente, o significado de uma imagem” e que “mesmo uma legenda inteiramente acurada não passa de uma interpretação, necessariamente limitadora, da foto à qual está ligada. E a legenda é uma luva que se veste e se retira muito facilmente”.
    Pedro Kok – The Baths Of Viareggio, Italy
    Descrição: Fotografia de uma fachada com uma moldura com um letreiro onde se pode ler “Primavera”.
    Conclui-se, então, que é preciso estabelecer uma relação de equilíbrio entre texto e fotografia, o que pode ser parcialmente afetado pelo caráter das fotografias ou do projeto que está sendo elaborado. Será que é necessário que o texto acompanhe as fotografias ou que as fotografias acompanhem o texto?
    Para te ajudar a refletir sobre a questão foi escolhido o ensaio “The Baths Of Viareggio, Italy”. Pedro Kok, o autor das fotografias, é graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP) e sua graduação influencia na escolha de suas fotografias que contemplam arquiteturas e espaços urbanos. Em “The Baths Of Viareggio, Itália”, Pedro retratou as casas de banho que existem na costa do Mar de Ligúria desde o começo do século XX, onde até o acesso à praia é pago. Com a ênfase na arquitetura e na tipografia das placas das casas de banho, toda informação sobre o lugar é conseguida em um texto muito curto e extremamente simples. As fotos, por sua vez, dispensam legenda.
    O ensaio de Pedro faz um segundo uso de palavras, mas também muito significativo: as palavras aparecem na própria fotografia como o objeto retratado. A possibilidade de usar palavras como o próprio tema da fotografia abranda a noção existente de ruptura entre texto e imagem e fornece novas formas de transmitir a mensagem, mostrando que um projeto fotográfico não precisa ser fechado e dependente apenas das fotografias. Também é interessante considerar outros tipos de textos e palavras que não sejam apenas os escritos, como os sons que podem ser adicionados à apresentação virtual de um projeto.
    Pedro Kok – The Baths Of Viareggio, Italy
    Descrição: Fotografia colorida de uma fachada onde, ao fundo, por cima de uma cerca viva há um letreiro onde se pode ler “Narcisa”.
    Apropriar-se das palavras é, de todas as maneiras, agregar conteúdo de forma positiva ao projeto fotográfico, seja para contextualizar, para reforçar um ideal ou para compor a apresentação. Pensando nisso, crie legendas para fotografias famosas sugerindo contextos políticos e artísticos diferentes do que o atual e comente aqui para discutirmos o valor das legendas.
    Outras postagens da série sobre ensaios e projetos fotográficos:

    Referências:

    • FREEMAN, Michael. A Narrativa Fotográfica: a arte de criar ensaios e reportagens visuais. Porto Alegre: Bookman, 2014.
    • SHORT, Maria. Contexto e Narrativa em Fotografia. São Paulo: Gustavo Gili, 2014.
  • The B-Side: Elsa Dorfman’s Portrait Photography

    Documentário intimista explora a vida e os arquivos da fotógrafa conhecida por suas fotos com uma câmera Polaroid gigante. 

    O documentário The B-Side: Elsa Dorfman’s Portrait Photography, lançado em 2017 e dirigido por Errol Morris, explora a vida e a carreira da fotógrafa Elsa Dorfman, que tinha 80 anos na época do documentário. Dorfman, que faleceu em maio de 2020, era muito conhecida por seus retratos tirados com uma Polaroid de formato 20×24. 
    Legenda: pôster do filme, 2017
    Descrição: uma mulher posa ao lado de uma câmera gigante antiga com um cabo na mão e sorrindo para frente. Na parte de cima está escrito o nome do documentário. 
    Elsa Dorfman nasceu em 1937, em Cambridge. Começou a se interessar por fotografia com 28 anos e ganhou sua primeira câmera em 1967. Depois de um período vendendo as fotos em pontos turísticos, ela publicou o livro Elsa’s Housebook: A Woman’s Photojournal, marco da fotografia estadunidense e da arte feminista, composto por autorretratos e fotos de seus conhecidos, como o escritor Allen Ginsberg. 
    Na década de 1980, Dorfman começou a trabalhar com o formato pelo qual ficou mais conhecida: as Polaroids 20×24. A câmera pesava mais de 100 quilos, o que obrigava a fotógrafa a trabalhar praticamente só em estúdio. Ela mesma definia sua forma de trabalho como algo “teatral”. 
    O documentário acompanha Elsa Dorfman relembrando sua trajetória, os diferentes momentos de sua carreira e sua forma de pensar seu próprio trabalho. Enquanto isso, ela mexe em seus arquivos, mostrando várias de suas fotografias e contando as histórias por trás delas. 
    Legenda: cena do documentário
    Descrição: uma mulher segura uma foto Polaroid gigante mostrando um casal parado um ao lado do outro em um fundo branco. Ao fundo vemos alguns arquivos e fotos coladas nas paredes.
    Além do formato de suas fotos, Dorfman também é reconhecida por fazer muitos retratos, principalmente de famílias e de pessoas conhecidas por ela. Esse tom intimista de seu trabalho é também o tom do documentário, que comenta muito pouco sobre outros assuntos da área de fotografia, mantendo o foco na “personagem” principal. 
    A fotógrafa conta que sempre preferiu tirar fotos de pessoas alegres, e que não tinha intenção alguma de capturar a alma das pessoas, mas sim a superfície delas, em uma visão da fotografia muito diferente de fotógrafos considerados mais “sérios”.
    Legenda: Elsa Dorfman, 1980. Elsa Dorfman/Courtesy Museum of Fine Arts, Boston.
    Descrição: uma mulher e dois homens posam sorrindo para a câmera um ao lado do outro em frente a um fundo branco. Na parte de baixo vemos vários escritos de caneta na foto. 
    Um dos momentos mais interessantes é quando Dorfman mostra as fotografias que foram “rejeitadas” por seus clientes, que ela apelidou de “lado-b”, e que quase sempre são resultados melhores do que as escolhidas. 
    Disponível na Netflix, The B-Side: Elsa Dorfman’s Portrait Photography é um documentário sobre uma fotógrafa não muito conhecida pelo grande público, mas que deixou um legado, não só pelo formato com que trabalhava, mas também pela intenção com que fotografava. 
    Já conhecia esse documentário? Acompanhe os posts para mais indicações de filmes sobre fotografia. E se você gostou do nosso conteúdo siga o nosso perfil no Instagram.

    Links, Referências e Créditos