O preconceito silencioso contra os mestiços
Tenee Attoh |
Vivo me perguntando, enquanto mestiço, como se tornou tão complicado falar do racismo contra pardos num país que normalizou a cor da pele como indicativo exclusivo de ancestralidade racial e origem étnica. É tão normal encontrar uma pessoa mestiça nas ruas brasileiras que isso sequer é falado, é cotidiano; mas, o fato de ser comum não deveria tornar a existência de problemáticas associadas à raça invisíveis, intocáveis e indiscutíveis.
Esses problemas são justamente o que tornam importante o trabalho de Tenee Attoh: as associações cotidianas com algo que passa despercebido aos olhos eurocêntricos, mesmo daqueles que não são caucasianos, inclusive os pardos: a diversidade.
A cultura do preconceito racial está tão enviesada no tom da pele, que é constrangedor até mesmo ter orgulho de suas raízes neste país. Afinal, se você não é negro retinto o suficiente para ter origens senegalesas, ou caucasiano o suficiente para ter descendência alemã, aos olhos de pessoas preconceituosas, você é visto com estranhamento e isso demanda explicações e afirmações. Sendo assim, se torna cansativo fazer das suas origens étnicas motivo de orgulho; é uma luta constante por auto-afirmação.
Para a modelo da fotografia, a dualidade cultural (italiana e paquistanesa) faz parte de sua essência. O fato de ter herdado culturas diferentes de seu pai e de sua mãe moldou a forma como ela enxerga política, por exemplo. Entretanto, em entrevista concedida para o site do projeto de Tenee Attoh (Disponível em: https://mixedracefaces.com/) ela alegou que por muito tempo teve questões delicadas a respeito de seu não-pertencimento.
Afinal, mestiços, seja em Londres, onde ela reside, ou no Brasil, são uma minoria desrespeitada cuja cultura lhes é desassociada. É aí onde a xenofobia e o racismo se unem para remover de toda uma parcela crescente, em nível global, suas heranças culturais.
Desde pequeno me vi não pertencendo às minhas origens de forma total, e sei que este é o caso da modelo da foto. Ela não possui traços que imediatamente são associados com o povo italiano, nem tampouco com o povo paquistanês, ainda que os fenótipos estejam lá parcialmente, em ambos os casos. É como misturar tinta vermelha em tinta branca: você só consegue compreender que o rosa é uma mistura depois de aprender sobre teoria das cores, mas não é algo instintivo.
Fica claro, para qualquer pessoa escura, que o racismo se esconde em qualquer penumbra, principalmente onde os comentários e olhares não podem ser vistos ou escutados. Assim fica mais fácil de acobertar a tentativa social de atribuir aos mestiços os duplos, ou triplos, ou sejam lá quantas forem as matrizes originárias destes povos do qual preconceitos são atribuídos, sem que algum crime seja cometido.
Na Itália, por exemplo, muitas pessoas possuem o que é chamado de “olive skin” no exterior e que aqui no Brasil é conhecido como moreno-claro, ou, surpreendentemente, pardo. No século 19, com um número alto de imigrantes italianos nos EUA, o preconceito afetou muito aquele povo. A miséria e a fome fortaleceram as atribuições a eles, como o odor fétido de peixe, que pejorativamente era associado à cor dos mesmos. Aqueles imigrantes ficaram conhecidos como pele-de-peixe, que recentemente se tornou um easter-egg em filmes como “Luca” e “A Praia”.
A Itália é a nação de um povo miscigenado, não uma etnia. E já passou da hora do Brasil e o restante do mundo compreender isto. Bem como já estamos num ponto em que a pureza racial deveria ser uma mentalidade extinta por completo. Ou será que as pessoas se esqueceram que foi essa mentalidade que levou aos acontecimentos do holocausto? Ou será que os brasileiros caucasianos nunca se olharam no espelho e notaram que o tom de suas peles, quase nunca é tão claro, quanto o tom da pele de um caucasiano purista da velha Europa? O que é branco aqui, lá seria preto.
#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.