A guerra é geralmente pensada como um espaço masculino. Na contramão dessa convenção, encontramos mulheres que desempenharam papéis importantes na fotografia de guerra.
Convencionalmente, a guerra é pensada como um espaço masculino: homens guerreiam, disputam territórios, confrontam-se nos campos de batalha, escondem-se em trincheiras. Às mulheres fica reservado o papel de esperá-los, de sofrer pelas perdas familiares, pelas devastações de suas casas, de suas cidades, quando não são violentadas, aprisionadas, torturadas. De acordo com Susan Sontag (2003, p. 11), “a máquina de matar tem um gênero, e ele é masculino”.
Habitualmente, também são os homens que fotografam a guerra. A atuação das mulheres como fotógrafas de guerra, se comparada à dos homens, é bastante limitada, embora a história da fotografia seja marcada com nomes importantes como de Lee Miller (1907-1977), Gerda Taro (1910-1937) e Alexandra Boulat (1962-2007), entre várias outras. Cobrindo conflitos diferentes, em épocas e perspectivas distintas, cada uma dessas fotógrafas contribuiu para a conquista do espaço da mulher na cobertura de guerra.
Lee Miller (1907-1977) teve múltiplas faces: modelo revolucionária e fotógrafa consagrada, participou da vanguarda cultural europeia nos campos da literatura, música, pintura, fotografia e artes em geral. Foi correspondente de guerra, passou por alguns relacionamentos, entre eles dois casamentos, e teve um filho. Foi dona de casa e graduou-se na escola de gastronomia Le Cordon Bleu. Diante dos problemas que enfrentou na infância, optou por sair de sua zona de conforto e enfrentar o mundo. Nunca se acomodou no contexto de “mulher, branca, bonita, rica e frágil”, tendo sempre lutado contra esse tipo de enquadramento, desafiando, causando espanto e revolucionando a sociedade dos anos 1920, 1930 e 1940.
Por sua coragem e forte personalidade, a fotógrafa americana foi exuberante em tudo que se dispôs a fazer. Miller foi uma das quatro fotojornalistas credenciadas como correspondentes da Segunda Guerra Mundial dos EUA. Conseguiu a credencial pela British Vogue, a mais improvável publicação a mandar uma mulher para guerra. Documentou a movimentação nos hospitais de campanha na Normandia, a vitória de Saint-Malo, a libertação de Paris, o avanço aliado na Alemanha, a batalha de Alsácia. Juntamente com o fotógrafo David E. Scherman (1916-1997), da revista Life, fotografou os campos de concentração de Dachau e Buchenwald, após a libertação dos sobreviventes.
O fato de ser mulher foi determinante no seu modo produção. Usando uniforme e botas masculinas, Lee Miller era sempre o centro das atenções. Naquela época, era impensável a presença de uma mulher na cobertura de uma guerra, por isso eles a protegiam, cuidavam dela. Tal circunstância facilitava o acesso da fotógrafa a momentos reservados, restritos aos soldados. Ajudava também que ela conseguisse imagens exclusivas, em ambientes que dificilmente outras pessoas teriam acesso, como mostra a fotografia de dois artilheiros norte-americanos deitados na cama do apartamento do Hôtel Ambassadeurs, falando no telefone e observando pela janela o momento para lançar fogo.
A relação da alemã de origem judaica Gerda Taro (1910-1937) com a fotografia teve início a partir do encontro com o jovem fotógrafo Andre Friedmann. Apaixonados, Friedmann ensinou seus conhecimentos à Taro e os dois passaram a fotografar juntos. Logo, Friedmann trocou seu nome para Robert Capa, personagem inventado pelos dois para capitalizarem melhor suas fotografias.
Em 1936, com o começo da Guerra Civil Espanhola, Taro e Capa mudaram-se para a Espanha com o objetivo de cobrir o conflito. Eles documentaram diferentes episódios da guerra, suas fotografias foram publicadas em revistas como a Regards e a Vu. Muitas vezes, eles fotografavam as mesmas cenas. No início era possível distinguir a autoria das fotografias, pois usavam câmeras que produziam negativos de formatos diferentes. Taro utilizava uma Rolleiflex, de formato quadrado, e Capa uma Leica, de formato retangular. Depois, os dois passaram a trabalhar com câmera de 35 mm, dificultando identificar quem havia feito determinada fotografia.
Em sua trajetória como fotógrafa, Gerda Taro procurou dar visibilidade à mulher. Como podemos observar na fotografia abaixo que mostra quatro jovens mulheres armadas e posicionadas em uma trincheira durante um combate. As protagonistas femininas demonstram entusiasmo e coragem. O olhar de Taro buscava sempre cenas como essa que rompessem com estereótipos.
Na Batalha de Brunete, Gerda Taro estava trabalhando sozinha. Ela fotografou o front e assistiu terríveis bombardeamentos da aviação nacional, colocando em risco sua vida em várias ocasiões. Acabou perdendo a vida aos 27 anos, quanto voltava da batalha. Acidentalmente, um tanque republicano derrubou-a do carro, esmagando o seu corpo.
A francesa Alexandra Boulat (1962-2007) formou-se em artes gráficas e história da arte e iniciou sua carreira como fotojornalista em 1989, influenciada pelo pai, o fotógrafo Pierre Boulat, que trabalhou na revista Life. Boulat trabalhou na Sipa Press durante 10 anos. Em 2001, juntamente com outros fotógrafos, co-fundou a VII Photo, uma agência de fotojornalismo. Boulat cobriu vários conflitos em todo o mundo (Oriente Médio, Afeganistão, Iraque e antiga Jugoslávia), Atuou também como fotógrafa em Ramallah, na Faixa de Gaza. Publicou imagens em veículos como a Time, Newsweek, The Guardian, National Geographic, entre outros. Alexandra Boulat morreu em de 2007, vítima de um aneurisma.
Um dos temas recorrentes nas coberturas que fazia era relacionado às vítimas de conflitos, particularmente as mulheres. Seu último trabalho importante foi sobre as mulheres muçulmanas na Ásia Menor e Oriente Médio. A sensibilidade do olhar de Boulat é marcante em seu trabalho. A fotógrafa parece encontrar humanidade na face da tragédia. Como acontece na fotografia em que uma luz suave incide sobre o rosto de uma senhora com um semblante abatido e desconfiado. Em segundo plano, outra mulher, mais jovem, parece compartilhar o mesmo sentimento. O plano plongée transmite a condição de inferioridade e vulnerabilidade das mulheres refugiadas.
Ao longo dos séculos XX e XXI, a participação da mulher no campo do fotojornalismo, principalmente na cobertura de guerras, vem crescendo expressivamente. Seguindo o exemplo de suas antecessoras, que romperam condições normativas e desafiaram a vulnerabilidade do corpo, a mulher vai timidamente conquistando respeito e espaço nos veículos de comunicação.
Como Butler (2015), acreditamos que a vida excede aos esquemas normativos e enquadramentos. Pensando assim, o papel da fotojornalista contemporânea é o de procurar romper velhos esquemas e fazer emergir outras possíveis formas de chamar a atenção para as atrocidades da guerra. Nesse sentido, a vida e a obra de Lee Miller, Gerda Taro, Alexandra Boulat, de suas antecessoras e sucessoras, é um convite à produção de novos enquadramentos na fotografia de guerra.
Clique nos nomes das fotógrafas citadas neste artigo para saber mais sobre a vida e a obra de cada uma delas: Lee Miller, Gerda Taro e Alexandra Boulat.
Links e referências
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Sobre as autoras
Kátia Lombardi é fotógrafa e professora do curso de Jornalismo e do PROMEL (UFSJ). Doutora pelo PPGCOM da UFMG. Pesquisadora em imagem, fotografia e memória.
Thais Andressa é graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). É fotógrafa e pesquisadora sobre o tema ” mulheres na fotografia”. Possui especialização (Senac) e trabalha com produção cultural. Realizou exposições individuais no Centro Cultural UFSJ (2018), no Museu Regional de São João del-Rei (2018) e no Centro Cultural Sesi Minas Ouro Preto (2019). Tem trabalhos fotográficos publicados nas revistas “Mais Saúde & Bem-Estar” e “Mais Vertentes”. Obteve o 2º lugar no Concurso Cultural fotográfico (2019) promovido pelo site “Tudo pra foto” e teve uma de suas fotos como semifinalista do Brasília Photo Show (2019). Atuou na cobertura fotográfica do Inverno Cultural UFSJ nos anos de 2017, 2018 e 2019.
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