Aurora é um exemplo de que uma bela composição fotográfica não salva o enredo.
Essa valorização das expressões, já comum nos filmes mudo, parece culminar, em “Aurora”, em um filme que consegue contar sua história praticamente apenas com imagens, tendo em vista que são pouca as inserções de letreiros de diálogos. E, neste caso em que a imagem corresponde a uma ferramenta narrativa essencial, a cinematografia é a estrela do filme. E, realmente, algumas escolhas que dizem a respeito da fotografia tornam o filme uma verdadeira poesia visual, como a escolha de alto contrastes entre sombra e luz, natural dos filmes expressionistas. Essa combinação de sombras dramáticas na imagem em preto e branco deixa o filme misterioso, tendendo para o suspense, mesmo nos momentos em que o filme é alegre. O filme também abusa bastante da dupla composição, principalmente para retratar pensamentos, como se eles possuíssem os personagens. Mesmo que a execução da técnica seja diferente no cinema, considero que o filme consegue oferecer um repertório para o uso da técnica, especialmente em fotografias que tem o intuito de narrar. Contudo, a despeito de toda a minha satisfação com a aparência do filme, desisti dele várias vezes, levando duas semanas para terminá-lo. No filme, o casal principal reata e vive uma “segunda lua de mel”, mesmo após o marido ter tentado matar a sua esposa. Não quero soar anacrônica, mas a misoginia notória dos anos 20 não me permite gostar desse filme. Este ano, após as repercussões do assassinato de George Floyd, monumentos passaram por uma onda de revisionismo histórico que atingiu inclusive os filmes, como “…E o Vento Levou”, retirado de algumas plataformas por suas representações racistas e recolocados com avisos sobre o conteúdo. Sinceramente, gostaria de ver “Aurora” passar por essa recontextualização também, afinal, quem quiser assistir que assista, mas que seja obrigado durante o processo a lidar com o fato de que se trata de uma representação de casamento prejudicial às mulheres. E digo isso porque o que me convenceu a terminar de assistir o filme foram as dezenas de resenhas que li sobre ele, todas com uma boa impressão do filme, me fazendo a chegar a conclusão que alguma reviravolta aliviaria a proposta machista do enredo. O final do filme, no entanto, é decepcionante e se mantém jogando a culpa na amante e romantizando a atitude de arrependimento do marido. As resenhas positivas se tratavam, portanto, de um não reconhecimento da situação de violência contra a mulher no enredo por parte do público.
Cena do filme “Aurora” – A violência contra mulheres é romantizada no filme. Descrição: Imagem em preto e branco. Mostra um homem enforcando uma mulher. |
O filme me fez refletir também sobre a questão estética das imagens em oposição ao seu conteúdo. É fato que existem, por exemplo, fotografias belas de coisas feias e vice-versa, assim como é comum transformar temas sérios ou tristes em obras de arte para serem expostas em museus ou decorar casas. Mas será que a construção de beleza artística, nestes casos, não acaba por dissimular feiura física ou moral do objeto retratado? Bom, “Aurora” se destoa desses exemplos, pois o filme realmente trata o assunto (um marido arrependido após quase assassinar a esposa) como belo, não há um reconhecimento da violência (e talvez fosse pedir demais que tivesse, tendo em vista o ano de lançamento do filme), então não foi uma tentativa de transformar algo feio em esteticamente bonito. Mesmo assim, esse filme me fez decidir que a apreciação da arte não vale injustiças históricas e nem a tolerância com certas atitudes dos seus criadores, como, por exemplo, diretores de cinema com condutas reprováveis. Gostou deste texto? Você pode receber outros como esse assinando à nossa newsletter mensal. É rapidinho e não custa nada, é só você entrar aqui, escrever seu nome e email e voilá!
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