Um garoto sozinho sai para visitar o mundo real e suas dificuldades
Em Seul, crianças brincam no conforto de seus quartos acarpetados, numa casa com as melhores tecnologias da terceira década do século 21. Enquanto em Jakarta uma criança exemplifica a realidade de inúmeras outras ao redor do globo. Esse menino é um herói em sua própria fantasia, erguendo sua capa contra a tirania de um mundo cruel e austero que seus olhos não são capazes de identificar verdadeiramente.
Fanny Octavianus |
Esse menino não tem nenhuma proteção contra possíveis doenças que a água suja de uma inundação possa lhe causar. Sua bermuda não lhe traz segurança e seu tórax está exposto. Ele se diverte sem o auxílio de qualquer responsável e parece resoluto em sua caminhada naquela rua inundada.
A fotografia em preto e branco realça um centro comercial fantasmagórico. Não é possível identificar nenhuma pessoa ou vida além das paredes de concreto que formam um corredor único, ladeando o garoto. O próprio céu com nuvens carregadas criam uma espécie de teto acima da cabeça do menino, como se o mundo estivesse lhe dizendo para onde ir e por onde ir.
A falta de escolha e oportunidades na vida não me escapam aos olhos. E isso é o que acontece com muitas crianças pobres no mundo. São essas crianças, desprovidas de iphones e coleções de brinquedos que estimulam a criatividade e as atividades físicas para se divertirem com o pouco ou com o nada que têm.
Além da diversão, essas crianças crescem sem as mesmas ferramentas, oportunidades, educação ou acesso à meios que possibilitem, futuramente, uma inserção num mercado de trabalho com a mesma facilidade que as crianças ricas possuem.
Na cena, o que era uma fantasia infantil, vira um meio de tornar a realidade mais palatável. Brincar com o caos ao seu redor, uma solução temporária para suportar o peso da vida, mas que pode ser letal.
É claro, uma criança jamais veria perigo numa rua inundada; seus olhos são infantis e ingênuos. Uma criança pobre, talvez enxergasse menos perigo ainda. Me colocando no lugar daquele menino, uma rua inundada seria pura diversão e possibilidades de explorar o mundo, de experimentar a sensação de suas canelas tocando a água, e tornar a travessia uma jornada admirável e tão fantasiosa quanto Papai Noel para crianças ricas ocidentais.
O garoto estando no meio da rua demonstra sua posição heroica e desbravadora. Ele aparenta até mesmo possuir uma estatura muito maior do que a que de fato possui. Pois, está tão centralizado na fotografia que de certo modo o centro comercial se torna achatado e o céu compactado.
Ainda que ele seja um herói em sua própria fantasia, aquele menino é só mais uma vítima de um mundo desumano e desigual. Essa aventura fantasiosa que o menino traça naquela rua me parece previsão duma árdua jornada futura. Jornada esta que remete a vida real, hoje, 12 anos após ter sido fotografado.
Sem as tecnologias de uma casa acolhedora e segura da terceira década do século 21 e sem um adulto o supervisionando, esse menino está exposto três vezes, desfavorecido três vezes: pelo governo que deveria cuidar de questões de saneamento básico, pelos responsáveis legais que deveriam cuidar de sua integridade e saúde física e pela sua própria ingenuidade.
#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quinta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.
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